domingo, 22 de setembro de 2024

Relógio do Ser


 

“Deixar de viver fragmentariamente.”  

E. M. Forster

 

Andar, caminhar nas nuvens, deslizando memórias no tempo que desloca a imagem entre o olho e a velocidade dos objetos em movimento, naquilo que tem de mais sagrado, a capacidade de pensar, sentindo o líquido dos sonhos, adiar os acontecimentos no relógio que desaparece diante da relação do tempo com o viver do absolutamente – nada mais para viver – tudo tão perdido, sintaxe dos sentimentos, uma construção de aromas, sabor da comida, gole do vinho, e a sensação de ter vivido tempo suficiente para não lembrar do que já foi vivido.

O resgate da memória está nesse acolhimento de histórias, de leituras, longas horas na água, observar a vida na profundeza das águas do imaginário, e o relógio quebrado no movimento das braceadas, a respiração no sopro de voz no inaudível, retrato colado na alma, sem tempo, a busca de uma compreensão da leitura, um desejo de voltar para um lugar em companhia do tempo sobreposto sobre o Nada. O sopro da voz, o som das coisas, o calor, o frio, a percepção de ver sem ter perdido de vista o tempo, e não se interessar ao absoluto da data, que corresponde de um dia ter lá vivido. E se realmente, lá ter ido, no lugar, a obra, o som, a pintura, na água, o fogo que destrói é o corte desse tempo, do retardamento do relógio, que não termina é o desaparece no presente. A finitude das coisas. O que importa é sentir-se como um flâneur. Ironia, parado no tempo, sem mobilidade, o movimento do ser, transmigrar de um lugar ao nunca alcançado, na direção do desconhecido. É real, nas manhãs a catalogar restos de objetos submersos, se deixa ficar exausto, como se tivesse atravessando um grande rio, em que nunca conseguiu chegar à margem, se imaginar do outro lado, lendo a escrita do seu outro lado, parece querer ser tradutor de uma história esquecida, morta, como todos os lugares que conhecera, sem tempo para viver, partiu chorando, por dentro, matando um sonho em cada viagem.

Dentro de si, um velho, lugar que habita, as imagens, sons diferenciados, pássaro da invenção, seres forjados em vida toda, nadadores, escribas, poetas, a dor dos Outros atribuídas ao tempo que vê a solidão das paredes, os vermes comendo a idade, como um personagem visto, indo se afogar em ideais em sonhos construídos através de livros, músicas, paixões, associação do tempo que em deslocamento, surge a relatividade maluca sem pé nem cabeça, ver o lado que inexiste voltar à existência, sentidos. E que a existência, pensando em Bergson, irrompe como uma conquista sobre o nada, Então, da nascente, o que revigora nas águas do autodesconhecimento, o profundo conhecimento do seu interior, porque o imaginativo, um dia desses, poderá sair feito barco, navegando rumo ao frio, até o não lugar da imagem margem da Terra.

Nos espaços, alongou-se a existência sobre o Nada, como se fora um tapete, surgindo depois o Ser, e dentro de todas coisas, o existido, o fantasmático, naves sem conexão com a realidade, sem discernimento argumentativo do jogo dos humanos. Pouco importa, nadar, morar, morrer, nascer, acordar no meio da escuridão, tatear a dor, e perseguir o outro lado da margem.

 

 

 

 

 

 

 

 


quinta-feira, 19 de setembro de 2024

O verbo ausente

 



“[...] Ó míseras cidades de homens ardilosos,

Ó desprezíveis gerações de ilustrados,

Perdidos nos dédalos de vossa ingenuidade,

Vendidos aos dividendos de vossas próprias invenções.”

T.S. Eliot

Não há necessidade alguma de fechar os sonhos, de interromper a leitura, de fechar as portas, de parar de inventar histórias, de viajar ao nada, de atravessar o oceano, não é preciso interromper o fluxo sanguíneo das ínfimas investidas na vida, não porque, tudo numa mesma coisa, é desde sempre, correndo do absoluto, do medo de viver sem propósitos, e tudo que nasce no dia, e que o acompanha nas tentativas de deixar morrer é o mesmo que te faz um sobrevivente, morto, e diante do nada, nasce o absurdo dos projetos inacabados, e de repente, surge um texto novo para ler, para sonhar em construir um lugar bom para acomodar sua dor, para dar mais afeto a sua vida, de começar novamente, e diante de mais um livro, um filme, um embeber-se de tanto amor e vontade de ir mais longe, de voltar no tempo que não é seu, que é do passado, e mesmo melancólico conseguir sorrir e iludir-se com a vida, como se existisse um paraíso a sua espera, como se pudesse dormir a noite toda, acordar ouvindo música, ao lado de uma mulher, de si mesmo, sozinho, sonho de ter tudo isso no seu tempo, e, depois, de muito ler, trabalhar, morrer feliz, bem longínquo do medo de acordar para mais um dia de sonhos, e de promessas, do acaso, das constantes e absolutas verdades que é viver, e ter que se deparar com tanta coisa ruim, injustiças, em si, no outro, na existência de ser o Outro, de morrer iludido com promessas feitas por sua teimosa racionalidade, e devaneio de querer vencer em algo uma só vez na vida. Se Deus é onipresente, bem que poderia salvar os seus seguidores. E se no mundo somos todos nós, aqui dentro, já dizia meu amigo Luiz Mauricio, estou em toda parte.


sábado, 14 de outubro de 2023

Passagens

       Brassaï -Pont Neuf, Paris (1949)


   As ruas são a morado do coletivo.”

Walter Benjamin

“Na praia, o homem, com os braços cruzados, crucificados ao sol.”
Albert Camus

 

Gostaria de ir a Paris, uma viagem à literatura,

Um regresso ao imaginário da juventude,

Um flâneur perdido no tempo,

em ruas, livrarias,

dos esquecidos os deuses em solitude.

 

Me prepararia dos olhos ao coração,

Compraria uma roupa, um tênis,

Me enfiaria dentro de dois livros na bagagem,

E, de quebrar, esperaria o acaso,

em plena contemplação.

 

Arrumaria uns dias, o momento de ver um filme,

No avião em uma conversa imaginária com Camus,

Um gole de vinho, uma lágrima de viver e morrer,

Voo noturno, pensando onde ficar, no descaminho.

 

O encontro do sonho com as possibilidades,

A língua anárquica percorrendo as ruas,

E nenhum fim naquilo que o pensado quer,

Ir, voltar, sem nunca morrer longe das águas.

sábado, 8 de julho de 2023

A arte de Zé Celso e Artaud

                  Reprodução/ Twitter/ Instagram

       

“Dar um passo não era mais dar um passo; era, para mim, sentir onde levava minha cabeça.”
Antonin Artaud

 

 

A tragédia na definição aristotélica é a imitação dos acontecimentos, daquilo que provoca terror, piedade, e que no final das contas, desemboca na purificação das emoções. E o teatro do Zé era essa amplitude através do corpo, a presença do corpo e alma dando vida à Vida. Artaud usou isso, o corpo para se defender do pudor dos que acham que a arte é apenas sublime. Um CU....

Zé, Artaud, tantos outros, para além do imaginado a pureza da alma....

Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix,

Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix,

Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix,

Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix,

Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix,

Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix,

Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix,

Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix,

Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix

Fênix, Fênix, Fênix, Fênix, Fênix.


sábado, 15 de abril de 2023

Investigação das águas

     Cádiz
 

367) A imagem mental é a imagem que é descrita quando alguém descreve sua imaginação. (Wittgenstein)

 

Comer todas as palavras e certezas de palavras, vãos em muros, filamentos do tempo, a história, paixão e fome dos olhos, diafragma da alma, um escape de som, uma luz entre os corpos, um resto de palavras, o som quase silêncio entre o medo e a revelação, a fome do desejo nas paredes do tempo, e o corpo abundantemente dança em luz que suaviza os movimentos, o som perdido entre os livros, uma letra entre as letras, a formação de nuvens no outono, o céu se fecha, os olhos de sal, mareados, o instante final do esquecimento desaparece entre os restos dos dias, afasia da desrazão em águas profundas, um mar de realidade, um revestimento encobrindo a palavra, a claridade na luz do sol cortando o revestimento, o emergir. De volta. É como trazer as palavras e o corpo de volta à superfície.

E os braços em longos, demorados movimentos, chapinhar entre plantas submersas, mistura de cansaço e carpas passando rente a pele, próximo do fim, o dia, um nadar quase na escuridão do lago adormecido, um outono de esquecer o que já viveu. Sem salva-vidas, ler o livro, entre folhas úmidas, os braços no ritmo do nadadores que buscam a liberdade no ato, no primeiro capítulo da viagem sem lugar para acabar. A imagem mental do nadador é quando ele escreve sua liberdade, descreve nas braceadas, sua imaginação naquilo que se esgota, não acaba nunca, pois é velejador sem fim.

(123) “O problema filosófico tem a seguinte forma: ‘Não sei me orientar em meio a essas coisas’ “.


sábado, 11 de março de 2023

Vida Invisível

      By Henri Cartier-Bresson - 1975 - Romênia 


"Em todo lugar que passo
lembro de você nessa cidade"
(poeta anônima colando fragmentos pela cidade de Porto Alegre)


Em todo lugar que vou lembro das ruas entre as pernas, movente, uma estrada sem fim, um prédio vindo abaixo, uma explosão diante do sonho sendo abafado por pedras, soterrado, o corpo arde.

As pernas ilesas, as mãos entre as coxas, e se masturbar no escuro do medo, diante da lua que escondeu o último desejo, morrer lutando. Sem poder partir, sonhando com águas abertas, o som das sirenes, nem deus existe diante do desconhecido, uma força que mete medo no poder, uma filosofia da natureza, ímpeto do improviso, do cantar e do movimento, o que move esse corpo, a tatuagem que olha, um mergulhar sem volta e o hálito das plantas se confundem, mergulho no vinho, busca dos olhos, e o corpo entre os escombros, um beijo antes do último copo, a morte é breve, o sonho é eterno, a linguagem movente do amor deixou de respirar, se masturbando até perder os sentidos.

Os responsáveis por tudo, por todos, os mesmos que se safam da tragédia, eles nunca sentirão esse medo nem o gozo nem o desejo de querer se salvar, e olha lá, uma luz, as máquinas estão por perto, e não será o amante que irá sobreviver, já está eternizado na ideia de ir além, de migrar por oceanos, e seus pés presos entre as pedras, e contínuos passos imóveis, seguirá sendo errante fugitivo da morte.

O som de uma voz, a canção entre os lábios, um voo escondido entre as pernas unidas de gozo e rios de lágrimas, de explosão de sirenes, e nada poderá salvar esse amor, essa luta contra a infinitude da solidão das pedras. Uma cama navegando solitária no mar, uma fuga providencial salvará a alma do único sobrevivente, nem eu nem ela, nem ninguém saberá o paradeiro dos sonhos.

Assim o pensamento se torna forte, um vulcão vindo do grito, do rio derramando os fluidos da juventude, um caminho sem volta. Não existe mais saída, tantos dias, as buscas prosseguem, a última viagem é não retornar para o mesmo lugar, perder os sentidos em outra parte, respirar, abrir a boca, um beijo, um copo de d'água, o que sacia é que faz bater forte, melhor acordar bem distante, longe de todos, dos sobreviventes um único que não estará na lista, é ele, ela, bem distantes, um último olhar, molhados entre as mãos, o suor da vida em uma língua desconhecida com gosto de mar.

Se afastam, barcos, naves perdidas no tempo, o amor ficará para outro abalo, outra força da natureza. Uma música, a voz que dança sob o olhar das algas, dos sobreviventes, a dança na imaginação, e tudo escurece, talvez noutra vida consiga falar a língua dos deuses, chega de buscas, a noite descansa e abandona o medo no sonho dos esquecidos. Ela some com as sirenes, um silêncio, o último gozo com gosto de água e batimentos ficam mais distantes, talvez tenha aprendido a ficar invisível diante da vida.


 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Atravessar o céu

      by Vincent van Gogh
 


 “Você sabe o que é a chuva meu bem
É uma princesa que cai do céu
É a tristeza em forma de véu”

Jorge Mautner

 

Detonar essa dor, um drone emocional bombardeando as entranhas, do alto dos sonhos as explosões fragmentárias de uma vida que morre, estilhaços espalhados, o vento que leva para o mar as cinzas. Renasce desde o dia pós-ditadura militar, que mais adiante esteve guardado na memória do mal.

Entre viagens lisérgicas, meditações, unificações de corpos, sobreviveram atrocidades hipócritas do capital, da moralidade, dos desvãos, dos buracos no universo, das teorias indo ladeira abaixo, das utopias morrendo, nascendo no desejo, nas paixões, nos foras e dentro, no afundamento do Ser, na virtualidade da vida, na superficialidade das famílias, nas profundidades de querer voltar sem jamais ter partido, nos reencontros com o passado, no medo do futuro, nos acontecimentos intensos dos corpos, da fuga, da solidão do corpo no centro perdido da cidade, no elevador para o fim da fila, na categoria dos objetos, no significado das linguagens, nas imagens da tela, no perfil mal-acabado da insignificância da individualidade diante da dureza da falta do que fazer, e por tudo na vida, diante da morte, um leve sopro para o fim. Diante do bracear ao encontro do amigo, do sonho de ter aquela mulher diante da vidraça da casa onde se nasceu, mas jamais morreria nela, já teria partido para o tempo que a tempestade de areia clareou no horizonte. A casa da infância tem de tudo, menos o fim, tem o começo, o circular das mãos dadas, dos abraços, dos filmes, da canção dos olhos adormecidos.

Não quero mais te ver, nem tocar no céu da boca da lua ao mar, muito menos vê-la partir dos meus dias, sumir na noite, sem dizer um até breve. Não quero mais tê-la ao meu lado, sentir a respiração, ouvir tua voz cantando “And I love her” – “Bright are the stars that shine Dark is the sky”, e parte de mim em nuvem, sumindo no escuro do mar, e as mãos se tocam por última canção de um fim sem ter ao menos começado no ano de nossas vidas. Tudo foi, mesmo o passado, aquele mesmo em que te amei, hoje nada tem significância diante do caminho em que teu corpo a mover-se aos poucos desaparece do outro lado da praia escura dos amantes. Não quero mais acordar no pensamento da maresia, no mar distante da vida.

E aí vai, quantas caras, quantas bocas, muito riso, alegria nos olhos, e tantas outras, e muitas bocas e tantas fomes, quantos céus, tantos nomes, tantos disfarces, pouco texto em tantos corpos, poucas e boas ideias, tantas lembranças, tantos esquecidos, e poucos resgatados, tantos naufrágios, tantos perdidos, tantas que migram todos os dias, tantas violações, tantos machos, tão atrozes, tanta violência de gênero, tanto racismo, tanta indiferença abençoada, tantos legitimados, tantas vozes, tanto silêncio, tanta covardia em tão pouco tempo. Quantos anos para perceber tudo isso, e tantos outros como você, os que sobrevivem da riqueza e trabalho de tantos que lutam, e pouco ganham.

Ah, quanta alegria falsa em um sorriso derretido nos trópicos. E eu, diante dessa beleza estonteante, estou a zero, que nem a noite de hotel do Caetano, e a noite ameniza o calor, ativa os notívagos, descansa o cérebro e a tristeza some nas páginas do surrado Cristal, e “somos estranhos” no silêncio e na noite que precisa de estrelas, porque não é bom ir adiante como fez um dia Celan.





Relógio do Ser

  “Deixar de viver fragmentariamente.”   E. M. Forster   Andar, caminhar nas nuvens, deslizando memórias no tempo que desloca a imagem entre...