domingo, 22 de dezembro de 2024

A temporada de um velho


 


“A velharia poética tinha boa parta na minha alquimia do verbo.”

Arthur Rimbaud

 

A vida serpenteia na solidão de Rimbaud, o melhor de tudo é o sono bêbado na praia, o movimento que pertence aos esquecidos do século, e nem mesmo a dor desfaz a realeza poética e o desejo dos esquecidos. O tesão não se contém, invade a vida na dor do corpo, até acalmar o medo e escolher seu lugar para descansar. E os ossos aquebrantados, diante do preparo da pátina nas paredes da alma, nessa bruta solidão que vomita no meu país envelhecido por sua riqueza cruel, e que não deixa revelar a imagem empenada na parede nua da vida, nas entranhas do medo que o totalitarismo faz nos velhos deste lugar, um misto cruel de racismo sem consciência, com absoluta naturalidade das desculpas e esquecimento do todo secular chamado, perdoar sem reparar. E nunca vai embora, continua escorrendo na idade da razão entre os dedos trêmulos, segura a vida que escapa, mergulha o corpo embebido em papel de livro – lá o movimento é naturalmente mais leve e o domínio da realidade está distante dos olhos críticos. Ninguém vive entre os corais, nas profundezas do mar dos condenados, o velho saiu para nadar e nunca mais voltou.


domingo, 1 de dezembro de 2024

Viagem ao fim do dia

                 @bande à part - Jean-Luc Godard -1964



“Viver é sentir dor, ele disse a si mesmo, e viver com medo da dor é recusar-se a viver.”

Paul Auster – (Baumgartner, 2023)

 

Tropeços. Vida. Insistir, atravessar a rua, olhar chispa, o lado do corpo em movimento, de jeito, coração tranquilo, e dentro do quarto vazio, acorda bem cedo, sem fazer barulho, levanta com o sol, dobra as roupas, rumo ao mar, abre os braços, prepara-se para um Nada, aquece o corpo, olhos de adeus, pega seu barco, braços fortes, mergulha no lugar mais fundo do amor, da solidão, começa a dar suas braceadas, jamais olha para fora, tudo dentro, mergulhado no mel, no abacate, na banana, também ouve a voz de alguém, abre os braços, continuamente, vagorosamente, entre os movimentos, síncope, a sinfonia das águas, desaparece no horizonte, sem descanso, sua obstinação é chegar vivo do outro lado do continente, entre o estreito, água congelante, o sorriso dentro do corpo, alma dos nadadores, recorda sua infância, sua primeira vez, travessar o rio de sua cidade, e querer fugir para bem longe, poder entrar tela adentro, o filme das tardes de domingo, nunca mais olhar para trás, de repente, lá está, novamente na mordida da vida, está entre o materno e o sagrado, corpo da sedução, dos vinhos, do primeiro sonho, do voo dentro do quarto fechado, do medo de morrer na tristeza, na impossibilidade de ver o mundo de ler os olhos de Camus, de poder folhar as invenções de Auster, de não comer mais, a mordida da vida que espedaça, que morre no corpo quente, líquida e lambuzada, lábios da tarde, da noite, no alto do prédio, trepar, no mais distante ponto da cidade, da morte do amigo, do adeus da amada, da fuga da realidade, do tentar acabar com sua dor na dobra da esquina na leitura em que a besta devora num fechar de olhos, na viagem do fim da noite, de acordar febril sem entender como um texto vai além do corpo do dono da escrita, e nesta morte, Ferdinand, vamos morrer, peço desculpa, não vou morrer antes de nadar neste rio, que atravessa os séculos, bebendo, encostado no muro que fica à beira do Sena, voltar novamente à infância, naquele outubro, deixar uma parte de sua vida, perder parte do corpo, do tempo, nas pedras de uma cidade sem fronteiras, nem os esquecidos conseguiram decifrar, porque a vida é assim, gravado na pedra imaginária: “Não olhe com mesmo olho do Outro, ele não diz nada a seu respeito”.

 

domingo, 22 de setembro de 2024

Relógio do Ser


 

“Deixar de viver fragmentariamente.”  

E. M. Forster

 

Andar, caminhar nas nuvens, deslizando memórias no tempo que desloca a imagem entre o olho e a velocidade dos objetos em movimento, naquilo que tem de mais sagrado, a capacidade de pensar, sentindo o líquido dos sonhos, adiar os acontecimentos no relógio que desaparece diante da relação do tempo com o viver do absolutamente – nada mais para viver – tudo tão perdido, sintaxe dos sentimentos, uma construção de aromas, sabor da comida, gole do vinho, e a sensação de ter vivido tempo suficiente para não lembrar do que já foi vivido.

O resgate da memória está nesse acolhimento de histórias, de leituras, longas horas na água, observar a vida na profundeza das águas do imaginário, e o relógio quebrado no movimento das braceadas, a respiração no sopro de voz no inaudível, retrato colado na alma, sem tempo, a busca de uma compreensão da leitura, um desejo de voltar para um lugar em companhia do tempo sobreposto sobre o Nada. O sopro da voz, o som das coisas, o calor, o frio, a percepção de ver sem ter perdido de vista o tempo, e não se interessar ao absoluto da data, que corresponde de um dia ter lá vivido. E se realmente, lá ter ido, no lugar, a obra, o som, a pintura, na água, o fogo que destrói é o corte desse tempo, do retardamento do relógio, que não termina é o desaparece no presente. A finitude das coisas. O que importa é sentir-se como um flâneur. Ironia, parado no tempo, sem mobilidade, o movimento do ser, transmigrar de um lugar ao nunca alcançado, na direção do desconhecido. É real, nas manhãs a catalogar restos de objetos submersos, se deixa ficar exausto, como se tivesse atravessando um grande rio, em que nunca conseguiu chegar à margem, se imaginar do outro lado, lendo a escrita do seu outro lado, parece querer ser tradutor de uma história esquecida, morta, como todos os lugares que conhecera, sem tempo para viver, partiu chorando, por dentro, matando um sonho em cada viagem.

Dentro de si, um velho, lugar que habita, as imagens, sons diferenciados, pássaro da invenção, seres forjados em vida toda, nadadores, escribas, poetas, a dor dos Outros atribuídas ao tempo que vê a solidão das paredes, os vermes comendo a idade, como um personagem visto, indo se afogar em ideais em sonhos construídos através de livros, músicas, paixões, associação do tempo que em deslocamento, surge a relatividade maluca sem pé nem cabeça, ver o lado que inexiste voltar à existência, sentidos. E que a existência, pensando em Bergson, irrompe como uma conquista sobre o nada, Então, da nascente, o que revigora nas águas do autodesconhecimento, o profundo conhecimento do seu interior, porque o imaginativo, um dia desses, poderá sair feito barco, navegando rumo ao frio, até o não lugar da imagem margem da Terra.

Nos espaços, alongou-se a existência sobre o Nada, como se fora um tapete, surgindo depois o Ser, e dentro de todas coisas, o existido, o fantasmático, naves sem conexão com a realidade, sem discernimento argumentativo do jogo dos humanos. Pouco importa, nadar, morar, morrer, nascer, acordar no meio da escuridão, tatear a dor, e perseguir o outro lado da margem.

 

 

 

 

 

 

 

 


quinta-feira, 19 de setembro de 2024

O verbo ausente

 



“[...] Ó míseras cidades de homens ardilosos,

Ó desprezíveis gerações de ilustrados,

Perdidos nos dédalos de vossa ingenuidade,

Vendidos aos dividendos de vossas próprias invenções.”

T.S. Eliot

Não há necessidade alguma de fechar os sonhos, de interromper a leitura, de fechar as portas, de parar de inventar histórias, de viajar ao nada, de atravessar o oceano, não é preciso interromper o fluxo sanguíneo das ínfimas investidas na vida, não porque, tudo numa mesma coisa, é desde sempre, correndo do absoluto, do medo de viver sem propósitos, e tudo que nasce no dia, e que o acompanha nas tentativas de deixar morrer é o mesmo que te faz um sobrevivente, morto, e diante do nada, nasce o absurdo dos projetos inacabados, e de repente, surge um texto novo para ler, para sonhar em construir um lugar bom para acomodar sua dor, para dar mais afeto a sua vida, de começar novamente, e diante de mais um livro, um filme, um embeber-se de tanto amor e vontade de ir mais longe, de voltar no tempo que não é seu, que é do passado, e mesmo melancólico conseguir sorrir e iludir-se com a vida, como se existisse um paraíso a sua espera, como se pudesse dormir a noite toda, acordar ouvindo música, ao lado de uma mulher, de si mesmo, sozinho, sonho de ter tudo isso no seu tempo, e, depois, de muito ler, trabalhar, morrer feliz, bem longínquo do medo de acordar para mais um dia de sonhos, e de promessas, do acaso, das constantes e absolutas verdades que é viver, e ter que se deparar com tanta coisa ruim, injustiças, em si, no outro, na existência de ser o Outro, de morrer iludido com promessas feitas por sua teimosa racionalidade, e devaneio de querer vencer em algo uma só vez na vida. Se Deus é onipresente, bem que poderia salvar os seus seguidores. E se no mundo somos todos nós, aqui dentro, já dizia meu amigo Luiz Mauricio, estou em toda parte.


sábado, 14 de outubro de 2023

Passagens

       Brassaï -Pont Neuf, Paris (1949)


   As ruas são a morado do coletivo.”

Walter Benjamin

“Na praia, o homem, com os braços cruzados, crucificados ao sol.”
Albert Camus

 

Gostaria de ir a Paris, uma viagem à literatura,

Um regresso ao imaginário da juventude,

Um flâneur perdido no tempo,

em ruas, livrarias,

dos esquecidos os deuses em solitude.

 

Me prepararia dos olhos ao coração,

Compraria uma roupa, um tênis,

Me enfiaria dentro de dois livros na bagagem,

E, de quebrar, esperaria o acaso,

em plena contemplação.

 

Arrumaria uns dias, o momento de ver um filme,

No avião em uma conversa imaginária com Camus,

Um gole de vinho, uma lágrima de viver e morrer,

Voo noturno, pensando onde ficar, no descaminho.

 

O encontro do sonho com as possibilidades,

A língua anárquica percorrendo as ruas,

E nenhum fim naquilo que o pensado quer,

Ir, voltar, sem nunca morrer longe das águas.

sábado, 8 de julho de 2023

A arte de Zé Celso e Artaud

                  Reprodução/ Twitter/ Instagram

       

“Dar um passo não era mais dar um passo; era, para mim, sentir onde levava minha cabeça.”
Antonin Artaud

 

 

A tragédia na definição aristotélica é a imitação dos acontecimentos, daquilo que provoca terror, piedade, e que no final das contas, desemboca na purificação das emoções. E o teatro do Zé era essa amplitude através do corpo, a presença do corpo e alma dando vida à Vida. Artaud usou isso, o corpo para se defender do pudor dos que acham que a arte é apenas sublime. Um CU....

Zé, Artaud, tantos outros, para além do imaginado a pureza da alma....

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sábado, 15 de abril de 2023

Investigação das águas

     Cádiz
 

367) A imagem mental é a imagem que é descrita quando alguém descreve sua imaginação. (Wittgenstein)

 

Comer todas as palavras e certezas de palavras, vãos em muros, filamentos do tempo, a história, paixão e fome dos olhos, diafragma da alma, um escape de som, uma luz entre os corpos, um resto de palavras, o som quase silêncio entre o medo e a revelação, a fome do desejo nas paredes do tempo, e o corpo abundantemente dança em luz que suaviza os movimentos, o som perdido entre os livros, uma letra entre as letras, a formação de nuvens no outono, o céu se fecha, os olhos de sal, mareados, o instante final do esquecimento desaparece entre os restos dos dias, afasia da desrazão em águas profundas, um mar de realidade, um revestimento encobrindo a palavra, a claridade na luz do sol cortando o revestimento, o emergir. De volta. É como trazer as palavras e o corpo de volta à superfície.

E os braços em longos, demorados movimentos, chapinhar entre plantas submersas, mistura de cansaço e carpas passando rente a pele, próximo do fim, o dia, um nadar quase na escuridão do lago adormecido, um outono de esquecer o que já viveu. Sem salva-vidas, ler o livro, entre folhas úmidas, os braços no ritmo do nadadores que buscam a liberdade no ato, no primeiro capítulo da viagem sem lugar para acabar. A imagem mental do nadador é quando ele escreve sua liberdade, descreve nas braceadas, sua imaginação naquilo que se esgota, não acaba nunca, pois é velejador sem fim.

(123) “O problema filosófico tem a seguinte forma: ‘Não sei me orientar em meio a essas coisas’ “.


A temporada de um velho

  “A velharia poética tinha boa parta na minha alquimia do verbo.” Arthur Rimbaud   A vida serpenteia na solidão de Rimbaud, o mel...