“Viver é sentir dor, ele disse a si mesmo, e viver com
medo da dor é recusar-se a viver.”
Paul Auster – (Baumgartner, 2023)
Tropeços. Vida. Insistir, atravessar a rua,
olhar chispa, o lado do corpo em movimento, de jeito, coração tranquilo, e
dentro do quarto vazio, acorda bem cedo, sem fazer barulho, levanta com o sol,
dobra as roupas, rumo ao mar, abre os braços, prepara-se para um Nada, aquece o
corpo, olhos de adeus, pega seu barco, braços fortes, mergulha no lugar mais
fundo do amor, da solidão, começa a dar suas braceadas, jamais olha para fora,
tudo dentro, mergulhado no mel, no abacate, na banana, também ouve a voz de
alguém, abre os braços, continuamente, vagorosamente, entre os movimentos,
síncope, a sinfonia das águas, desaparece no horizonte, sem descanso, sua
obstinação é chegar vivo do outro lado do continente, entre o estreito, água
congelante, o sorriso dentro do corpo, alma dos nadadores, recorda sua
infância, sua primeira vez, travessar o rio de sua cidade, e querer fugir para
bem longe, poder entrar tela adentro, o filme das tardes de domingo, nunca mais
olhar para trás, de repente, lá está, novamente na mordida da vida, está entre
o materno e o sagrado, corpo da sedução, dos vinhos, do primeiro sonho, do voo
dentro do quarto fechado, do medo de morrer na tristeza, na impossibilidade de
ver o mundo de ler os olhos de Camus, de poder folhar as invenções de Auster,
de não comer mais, a mordida da vida que espedaça, que morre no corpo quente,
líquida e lambuzada, lábios da tarde, da noite, no alto do prédio, trepar, no mais
distante ponto da cidade, da morte do amigo, do adeus da amada, da fuga da
realidade, do tentar acabar com sua dor na dobra da esquina na leitura em que a
besta devora num fechar de olhos, na viagem do fim da noite, de acordar febril
sem entender como um texto vai além do corpo do dono da escrita, e nesta morte,
Ferdinand, vamos morrer, peço desculpa, não vou morrer antes de nadar neste
rio, que atravessa os séculos, bebendo, encostado no muro que fica à beira do
Sena, voltar novamente à infância, naquele outubro, deixar uma parte de sua
vida, perder parte do corpo, do tempo, nas pedras de uma cidade sem fronteiras,
nem os esquecidos conseguiram decifrar, porque a vida é assim, gravado na pedra
imaginária: “Não olhe com mesmo olho do Outro, ele não diz nada a seu respeito”.
Um comentário:
Sensacional!
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