domingo, 1 de dezembro de 2024

Viagem ao fim do dia

                 @bande à part - Jean-Luc Godard -1964



“Viver é sentir dor, ele disse a si mesmo, e viver com medo da dor é recusar-se a viver.”

Paul Auster – (Baumgartner, 2023)

 

Tropeços. Vida. Insistir, atravessar a rua, olhar chispa, o lado do corpo em movimento, de jeito, coração tranquilo, e dentro do quarto vazio, acorda bem cedo, sem fazer barulho, levanta com o sol, dobra as roupas, rumo ao mar, abre os braços, prepara-se para um Nada, aquece o corpo, olhos de adeus, pega seu barco, braços fortes, mergulha no lugar mais fundo do amor, da solidão, começa a dar suas braceadas, jamais olha para fora, tudo dentro, mergulhado no mel, no abacate, na banana, também ouve a voz de alguém, abre os braços, continuamente, vagorosamente, entre os movimentos, síncope, a sinfonia das águas, desaparece no horizonte, sem descanso, sua obstinação é chegar vivo do outro lado do continente, entre o estreito, água congelante, o sorriso dentro do corpo, alma dos nadadores, recorda sua infância, sua primeira vez, travessar o rio de sua cidade, e querer fugir para bem longe, poder entrar tela adentro, o filme das tardes de domingo, nunca mais olhar para trás, de repente, lá está, novamente na mordida da vida, está entre o materno e o sagrado, corpo da sedução, dos vinhos, do primeiro sonho, do voo dentro do quarto fechado, do medo de morrer na tristeza, na impossibilidade de ver o mundo de ler os olhos de Camus, de poder folhar as invenções de Auster, de não comer mais, a mordida da vida que espedaça, que morre no corpo quente, líquida e lambuzada, lábios da tarde, da noite, no alto do prédio, trepar, no mais distante ponto da cidade, da morte do amigo, do adeus da amada, da fuga da realidade, do tentar acabar com sua dor na dobra da esquina na leitura em que a besta devora num fechar de olhos, na viagem do fim da noite, de acordar febril sem entender como um texto vai além do corpo do dono da escrita, e nesta morte, Ferdinand, vamos morrer, peço desculpa, não vou morrer antes de nadar neste rio, que atravessa os séculos, bebendo, encostado no muro que fica à beira do Sena, voltar novamente à infância, naquele outubro, deixar uma parte de sua vida, perder parte do corpo, do tempo, nas pedras de uma cidade sem fronteiras, nem os esquecidos conseguiram decifrar, porque a vida é assim, gravado na pedra imaginária: “Não olhe com mesmo olho do Outro, ele não diz nada a seu respeito”.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Sensacional!

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