Passagem maravilhosa de Simone de Beauvoir sobre a morte de Camus. Texto que instiga os leitores a conhecer um pouco mais desta grande escritora e do inigualável Albert Camus.
Simone
de Beauvoir em “A força das coisas”, p. 212-213, Difusão Europeia do Livro, São
Paulo, 1965. Tradução: Maria Jacintha
“Eu
estava só em casa de Sartre, numa tarde de janeiro quando o telefone soou: ‘Camus
morreu, agora mesmo, num desastre de automóvel’, disse-me Lanzmann*. Voltava do
Sul, em companhia de um amigo, o carro fora de encontro a um plátano e ele
morrera instantaneamente.Pousei o fone, um nó na garganta, os lábios trêmulos. ‘Não
vou chorar, disse-me. Ele não era mais nada para mim.’ Fiquei de pé, junto à
janela, olhando a noite descer sobre Saint-Germain-des-Prés, sem poder
acalmar-me e sem poder, também, mergulhar em um verdadeiro desgosto. Sartre
emocionou-se, também, e durante toda a noite, em companhia de Bost,
falamos sobre Camus. Antes de me deitar,
tomei beladonal; eu não mais o usava, desde a cura de Sartre. Precisava dormir;
não fechei o olho. Levantei-me e, vestida de qualquer maneira, fui andar dentro
da noite. Não era o homem de cinquenta anos que eu lamentava; não era aquele
justo sem justiça, severamente marcado, de arrogância sombria, que rasgara meu
coração com o seu consentimento aos crimes da França; era o companheiro dos
anos de esperança, cujo rosto franco tão bem sabia rir e sorrir; o jovem
escritor ambicioso, apaixonado pela vida, seus prazeres e seus triunfos, pelo
seu companheirismo, por seu amor e sua fidelidade. A morte ressuscitava-o; para
ele, o tempo não existia mais: ontem não tinha mais verdade do que anteontem;
Camus, tal como eu o amara, surgia da noite, ao mesmo tempo reencontrado e
dolorosamente perdido. Sempre que um homem morre, com ele morre uma criança, um
adolescente, um jovem: cada um de nós chora aquele que lhe foi mais caro. Caía
uma chuva fina e fria. Na avenida Orléans, vagabundos, encolhidos e transidos,
dormiam nas soleiras das portas. Tudo me dilacerava: essa miséria, essa
desgraça, essa cidade, o mundo, e a vida, e a morte.”
*Claude Lanzmann é jornalista, escritor e cineasta, nasceu em 1925.
Photos by Henri Cartier-Bresson - Paris, 1946
Photos by Henri Cartier-Bresson - Paris, 1946
Um comentário:
udo me dilacerava: essa miséria, essa desgraça, essa cidade, o mundo, e a vida, e a morte........ puxa perdi o fôlego.
Postar um comentário