sábado, 3 de setembro de 2022

Notas de Lisboa



 


“O vento, enfim, parou
Já mal o vejo por sobre o Tejo
E já tudo pode ser tudo aquilo que parece
Na Lisboa que amanhece”
(Sergio Godinho)
 

“Vejo esta cidade

parada no tempo

deve ser saudade

a vista que invento”

(Pedro Ayres Magalhães – Lisboa Rainha do Mar – Madredeus))

 

Se eu pudesse levar uma trilha sonora para onde quer que fosse, escutar, ver o mundo por dentro, entranhas fincadas na memória, à maneira de um passante, errante, dono do seu devaneio. À toa o Ser. Um desavisado, já dizia Bergson, em outro canto da vida: o passado expandindo-se no seu presente, permanecendo tão atual, a ação, movimentos dos corpos por noites em Lisboa. E, por dentro, lá se vai manhã que acorda os sonhadores depois da luz, bem antes da salvação dos navios mercantes, sanguinários.

Ter o espaço imaginário, as frestas da vida, entre o contínuo movimento, longa viagem do corpo, renasce, tempo penetra, entre lágrimas e riso, lá do alto dos afagos noturnos da cidade que abraça e beija os sonhadores.

A noite acalma a ansiedade, desfaz as malas, e as dádivas das noites eternas, dentro da gente, em olhares cúmplices, nos leva até o Tejo. E sobre o rio, hei de amanhecer todos os dias que ainda me restam. O sonhar entre vidas, estar-juntos na perfeição incomum das águas profundas e prazer de subir teu dorso secular beijando as paredes de tua vida.

Noturno sobre a cidade. Ávido pelo Tejo na Lisboa vista do alto, e o autocarro a levar-nos de uma ponta a outra, do Baixo à Ribeira, e alma que acende olhos estocados em imagens, que esconde a dor dos esquecidos, da história dos bairros antigos, em ruas tão antigas e tão novas, uma transfusão de sangue novo. Lá de cima, hei de ver-te. E o rio ao fundo esconde e revela atentos olhares, o curso das águas em cada individualidade, o atento vulto espreita seus viajantes se perderem entre fados e beijos. O dia, clarear as horas dos esquecidos, fátuo instante, entre paradas do autocarro, sigamos na circularidade do começo ao fim, perneando sussurros direcionados de volta para a casa.

A cidade esticada, braços enlaçam as quebradas, cantos escondidos, e nos perdemos nos abraços, e o dia vem cedo em nossa janela. O banho, levantar, ir até a padaria tomar o café, ler um pouco. Um do outro, descobre-se um pouco mais, estudar as mãos, decidir os rumos da vida, partilhar os nossos amores, sonhos, abrir nossas gavetas, se desfazer das coisas úteis.

Os mínimos em tudo! Olhar os segredos perenes do rio de Lisboa. Lá, onde as faluas encontram as fissuras, a correnteza para o amanhã na abertura do tempo, do universo, o céu descansa sua escuridão, e é de lá que as galáxias se fundem, a última grande fusão da Via Láctea aconteceu há 10 bilhões de anos.

Tenho tempo suficiente para ver o Tejo, da parte alta do pensar, perdido no tempo, acompanho a guardiã dos dias, o brilho dos olhos tomando seu café da manhã. Os anos começaram a ser contados desde o dia em que a pisei, depois de nadar entre os tentáculos dos cefalópodes, a Lisboa encharcada de sonhos e medos, acordar ao lado da ponte, e atravessar a cidade no tempo que cabe todo na história de cada Um.

 

 


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