sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Filmes


“[...] uma gota de nada dissolvida no ar vazio.”
Paul Auster
(4 3 2 1)

 

 

Ao rio que mora na gente, a presença forte por cima da gente, como se fosse nos cheirar por todas as gotas que trasbordam dos rostos, dos poros. O corpo encharcado, uma sombra no escuro, um peso mais leve que a folha noturna caindo do teto.

E tenta mover os braços, sentir a pele, minhas mãos, nossas mãos sobre o rosto. Lembrar daquele romance de Auster tardiamente, na velhice, e não na infância, no interior de seu mundo, nos braços da voz de sua mãe, e no livro que era a sinfonia do choro dos dois, “rolar na lama”, e não era só tristeza dos dois, ele ainda pequeno, na solidão com sua mãe, um filme na tevê preto e branca, o som dublado dos sentidos, e no romance dizia que “as lágrimas não paravam de empurrar os dois para o passado”. Ela sabia da proteção desse amor, e o filho sentado ao seu lado, a película no ecrã Colorado, a marca de um tempo, e as lágrimas uma terapia e proteção ao lado de sua mãe.

O tempo foi mais distante que eles pudessem imaginar, nem ela mais pensava no passado, o futuro no interior escondido de suas almas era que “o choro chegou ao fim”, e tudo isso lembrado anos e anos mais tarde. Foi preciso muita lágrima, distanciamento para compreender o amor, a solidão, e os livros, os filmes em trilhas regadas do álcool da vida, uma contemplação para o retorno àquele tempo que ficava ao lado da mãe, que ouvia histórias, tampouco importava se do mundo dela, já era o futuro, e um jovenzinho teria que brincar sozinho, encontrar os amigos, os segredos e mistérios da vida no apogeu, e como o futuro já era ao lado de sua mãe, tudo voltou como antes, ele chora sozinho ao lado de si.

E o relato:

Meu corpo imóvel, sem ação, tentei dizer algo, como se a voz estivesse contida naquele livro de capa verde um pouco claro, manchado, e letras parecendo uma caligrafia suja do envelhecimento.

E como o livro adormeceu, ao lado a força presente no escuro dos olhos regalados do presente. Um peso sem volume, um ar denso dissipando as forças, o movimento eterno, e ele procurando forças para abrir de vez os olhos, uma contratura entre o movente e a paciência eterna do querer demorar para sentir a presença.

Uma falta de absoluto, uma força bruta na leveza do corpo inerte. O hálito de baunilha, o doce está na pele, os cheiros da infância, uma folha úmida entranhada no rosto movida entre os braços e o vulto que desapareceu. Quase tocou sua mãe. Por um décimo de segundo, um pouco mais, talvez da próxima vez consiga decifrar as lágrimas ao lado dela.  

 

 

 

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