“Era capaz de ouvir o que escrevera. Caminhava em
direção a uma representação de si mesmo. Todas aquelas noites sozinho.”
Ian McEwan
Ainda penso no romance de Ian McEwan, Amsterdam, aquela história dos dois amigos
que vão ao funeral da Molly (que tinha sido amante dos dois). Mas aqui, neste
fevereiro congelado, paro no centro da ponte Tower Bridge, penso na história,
no que o livro possa significar num inverno londrino em fevereiro. Eu sem um
exemplar do livro que me vem à cabeça não sou ninguém, espasmos na memória.
Lembro do egoísmo, dos personagens que estão na paranoia do jornalista e do
músico. Fico a dez passos das mulheres que atravessam Londres comigo. Atrás, vejo-as,
passo a passo, a multidão cruza nossos caminhos, as vozes todas em burburinho,
e o único som significante no momento é meu pensamento no romance de Ian McEwan.
Percorro a memória no lado mais abominável do ser humano, na inveja, na moral
forjada durantes anos e sinto o sol forte me aquecer. Ainda posso caminhar e
pensar no que li, essa é a dádiva da natureza, estou aqui e penso que não tem
como andar com os livros em todos os lugares mas consigo lembrar até onde fiz
as anotações. Algo que me arranca da realidade, impulsiona meus pensamentos,
meus olhos cerram em segundos, penso na audição das palavras que brotam da
velha ponte; seu passado de coisas que não calaram, porque sei que posso não
saber, naquele momento o que ficou no tempo sem testemunhas, suicidas,
bandidos, assassinos, amantes que por ali passaram. Mas, logo adiante, a memória
retornará do presente, as páginas do Amsterdam.
O prazer de retornar ao que já li, quando sinto o cheiro dos lugares, das ruas que
inspiraram uma história, percebo o pouco que consigo construir a partir das reminiscências.
O romance morre na última página, os dois personagens desapareceram em
Amsterdam. Meus passos cruzam Londres, a cidade me ajuda a esquecer o lado
soturno da vida. Páginas existem, mas estão gravados nesse emaranhado de ideias
que flutuam sobre o rio, no frio cortante de um inverno aquecido pelos olhos de
mais um viajante a vislumbrar uma livraria na beira do rio. (Fevereiro de 2013)
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