segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Infância




“Se as portas da percepção estivessem limpas tudo se mostraria
ao homem tal qual é, infinito.”
Willian Blake

Minha infância é marcada por epifanias, revelações e desmascaramentos da vida. Nem tudo o que uma mãe diz é da vida, é real. Nem toda realidade cabia em nossas vidas, minha mãe tinha um vida olhada de outro lado do vidro embaçado, um vidro de sonho, forjado na mentira dos pais, dos pais dos pais, dos avós dos avós, de imaginários distantes. Ela sonhou com algo, depois de olhar o vidro, através da janela, o dia de chuva que traria o outro dia, e assim, infinitamente, a felicidade que ela perdeu em um tempo que não era o meu. O sonho se apagou no opaco da vidraça velha. Assim é vida na infância, a minha vida foi isso, um pouco de sonho e tristeza e alegria que esse tempo ficaria distante em breve. A brevidade da vida me fez sentir melhor na infância.
O todo é o sonho de revelar o desejo de ver o filho ao lado, não de ver o filho no mundo, “lá fora o mundo perigoso”, ela dizia, eu lembro, na minha tenra idade de cinco anos eu esperava os aviões, as nuvens fazerem um país lá do alto. O frio na cidade morta era só nosso; ainda um Paraíso Perdido, depois é que descobri que era um Paraíso Reconquistado de John Milton. Assim começa a primeira verdade, a ocultação do real. É um subterfúgio de proteção. Assim nasci. Sob a égide dos anos sessenta do século XX, que só ferrou a vida, nesta época o desconhecido não era a ciência, era a própria vida e a religião só fazia sentido porque Deus existia depois do vidro, também, lá haviam os homens do mal, esses, os que exatamente criam em Deus e me colocaram goela abaixo, misturado no copo de leite, a mentira e a verdade para o resto dos meus dias. Um paraíso a ser conquistado se anunciava, depois do longo período de privação da felicidade, assim é a infância num país em que a natureza para preservar um quintal bonitinho de moral lavada é preciso acreditar no social imposto. Um quintal no fim do mundo existia além do vidro opaco dos sonhos e lamentos, e foi preciso inventar no meu quarto, à noite, outro país para sobreviver ao sol e ao frio. Na infância foi isso, entre a morte e a vida, o primeiro ato de vida, o choro, o corte do cordão umbilical, os braços da mãe, entre a vida e a literatura, a primeira escola. O primeiro olhar para além da janela. A desilusão do mundo, lá fora era tudo tão sem vidro, sem mãe, que eu tive que aprender a tecer as nuvens na espera de um dia ir ao mundo.
(Fragmento de Baía de Corbiére)


2 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Que belo, o seu blogue, Luis!

Grata pela visita ao Catharsis.

Marta Maronez Cigaran Chaves disse...

a infância é o lugar onde nunca queríamos ter saído.

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