“Se as portas da percepção estivessem limpas tudo se mostraria
ao homem tal qual é, infinito.”
Willian Blake
Minha infância é
marcada por epifanias, revelações e desmascaramentos da vida. Nem tudo o que uma
mãe diz é da vida, é real. Nem toda realidade cabia em nossas vidas, minha mãe
tinha um vida olhada de outro lado do vidro embaçado, um vidro de sonho,
forjado na mentira dos pais, dos pais dos pais, dos avós dos avós, de
imaginários distantes. Ela sonhou com algo, depois de olhar o vidro, através da
janela, o dia de chuva que traria o outro dia, e assim, infinitamente, a
felicidade que ela perdeu em um tempo que não era o meu. O sonho se apagou no
opaco da vidraça velha. Assim é vida na infância, a minha vida foi isso, um
pouco de sonho e tristeza e alegria que esse tempo ficaria distante em breve. A
brevidade da vida me fez sentir melhor na infância.
O todo é o sonho
de revelar o desejo de ver o filho ao lado, não de ver o filho no mundo, “lá
fora o mundo perigoso”, ela dizia, eu lembro, na minha tenra idade de cinco
anos eu esperava os aviões, as nuvens fazerem um país lá do alto. O frio na
cidade morta era só nosso; ainda um Paraíso Perdido, depois é que descobri que
era um Paraíso Reconquistado de John Milton. Assim começa a primeira verdade, a
ocultação do real. É um subterfúgio de proteção. Assim nasci. Sob a égide dos
anos sessenta do século XX, que só ferrou a vida, nesta época o desconhecido
não era a ciência, era a própria vida e a religião só fazia sentido porque Deus
existia depois do vidro, também, lá haviam os homens do mal, esses, os que
exatamente criam em Deus e me colocaram goela abaixo, misturado no copo de
leite, a mentira e a verdade para o resto dos meus dias. Um paraíso a ser
conquistado se anunciava, depois do longo período de privação da felicidade, assim
é a infância num país em que a natureza para preservar um quintal bonitinho de
moral lavada é preciso acreditar no social imposto. Um quintal no fim do mundo existia além do vidro opaco dos sonhos e lamentos, e foi preciso inventar no meu
quarto, à noite, outro país para sobreviver ao sol e ao frio. Na infância foi isso, entre a morte e a vida, o primeiro ato de vida, o choro, o corte do
cordão umbilical, os braços da mãe, entre a vida e a literatura, a primeira escola. O primeiro olhar para além da janela. A desilusão do mundo, lá fora era
tudo tão sem vidro, sem mãe, que eu tive que aprender a tecer as nuvens na
espera de um dia ir ao mundo.
(Fragmento de Baía de Corbiére)
2 comentários:
Que belo, o seu blogue, Luis!
Grata pela visita ao Catharsis.
a infância é o lugar onde nunca queríamos ter saído.
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