sábado, 22 de setembro de 2012

Infância II




“Quanto mais a arte quiser ser filosoficamente clara, mais ela se degradará
e remontará ao hieróglifo infantil; ao contrário, quanto mais a arte  se destacar do ensinamento, mais ascenderá à beleza pura e desinteressada.”
Charles Baudelaire

A cidade, próxima da fronteira, fronteira do lado, da dor dos que sonham em fugir atravessando um rio, lá atravessei, fiquei no mesmo lugar, quase morri de ver o outro lado, o outro lugar mesmo, o que tinha me jogado na água. O limite margeado de terra, a distância infinita de campos até chegar o outro lado, a Argentina, a primeira fronteira que vi e atravessei a infância. O lugar que me levou para o esquecimento do presente, ninguém foi culpado, o país era uma merda mesmo, a realidade estava repleta de vida, uma parte disso tudo era de mim, dos outros, dos que eu amava, então, pensei, aqui vou eu. A ilusão era maior que o sofrimento dos outros. Assim era esse tempo, a miséria vigiava a casa. Tempos difíceis. Queria ir embora, do outro lado do rio era o lugar da mesma margem. Afundei meus dias nas tardes de domingo no cinema. Comecei a fazer jogos do faz de conta, comecei a imaginar que as fotografias nas revistas poderiam ser uma saída mais dignificante para quem não tinha onde fugir, comecei a frequentar os sons de rádios, as letras de músicas, os poemas modernistas, as semanas de abril, os sussurros dos adultos, as vozes do além...


Assim se nomeia os lugares, pessoas que eu podia transpor ao outro lado, muito longe da minha cidade, estavam do lado da Argentina.
Me entristecia a vida daquela forma. Depois pensei – não me importo mais com nada, o agora é o retorno através do texto ao passado. Só me interessava pensar o tempo, a lonjura da vida. Se faz de tudo, se pega algo do pai, da mãe, se inventa e se ilude, se pensa que isso poderá modificar o lado das pessoas, a cabeça continua no mesmo lugar. Mudo o lugar da cama. Penso, mudo a cama de cidade, o acaso é um dobrar na esquina, e te ver a caminhar do outro lado do rio, eu aqui. Por isso pensei, ainda hei de morrer de tanto sonhar.
O que interessa é o tempo, se a verdade sempre existiu sobre o tempo, sobre as pessoas que vivem esse tempo memorialista. Onde estou: na infância?
Pois bem, depois das lágrimas, a viagem ao outro lado, infância, os textos, a leitura, a solidão, os amigos, os amores, a terra se tornou cada vez mais feia e recrudescida por aqueles tempos. A liberdade estava em meus olhos, na música, na bola, no jogo, nos livros e a poesia é que cortava meu corpo em vidas.


Um comentário:

Marta Maronez Cigaran Chaves disse...

A liberdade estava em meus olhos, na música, na bola,no jogo, nos livros,a poesia é que cortava meu corpo em vidas. Lindo final, na veia.

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