sábado, 31 de julho de 2010

Azul





« Que pode um homem ? Combato tudo — fora do sofrimento de meu corpo, para além de uma certa grandeza. »
Paul Valéry


Em pleno inverno, Morlaix vive em seu mistério. Meu coração sem método não se entrega ao frio. Acordo congelado. Perdi as cobertas no meio da noite, adentro sonho à noite com barcos que jamais voltarão do mar. Um ir sem volta. O que se perde no tempo, no sonho, e de nada para reclamar, afinal de contas acordo olhando a cor do teto, um azul esverdeado da umidade, quase da cor do fundo do mar visto lá do alto. O teto me olha também, como na infância que a gente via os textos, as paredes úmidas e fazia montanhas e mares só com os olhos bem atentos. A praia fica em desespero, a tempestade na areia, as casas não abrirão as janelas hoje, pensei ao acordar. Seria o fim do dia isso e não o amanhecer, mas a tempestade deste inverno nos deixa acuado, todo mundo entorno do velho fogão. Uma mesa grande e todos lá tomando café. A porta do quarto está aberta. Ela não dormiu comigo. Puta que o pariu. Procuro umas chinelas embaixo da cama e não encontro nada. Desço até a cozinha. Todos tomam café e o vento zunindo na porta. No fundo uma música sem definição, não sei o que é mesmo, mas pouco importa porque ainda tem café quentinho. Juntos. Estamos viajando uns 10 dias. Tugny fuma seu cigarro descansado enquanto lê um livro velho sem capas. Disse que encontrou no quarto. Lembro que perdi os chinelos e novamente pergunto se alguém viu passar umas chinelas de lã. O sol lá fora, olhe, lá está ele vindo com o vento aos poucos. Todos contam histórias em francês, espanhol e inglês. Minha mulher está numa conversa acirrada com a mulher do Tugny, histórias de Morlaix, notas do passado que envolve a família de Tugny, do seu avô escritor, também sobre a importância de Corbière em nossas vidas. Naquele momento, nossa estadia lá se dava por um projeto, um roteiro de filme, um livro, uma escritura que estava sendo feita às escuras por nós dois. Em Tugny, principalmente, imagino que esteja escrevendo, nos prometemos de nunca discutir sobre isso e simplesmente viver, sei que ele se afastava sem se despedir, que eu me afasto e cada um no seu canto escreve o que vem à cabeça. Ele ganha a vida escrevendo, eu ganho a vida lendo. Isso tinha tudo para dar errado, pelo menos de minha parte. Eu ganho a vida vendo eles de longe, ganho a vida escrevendo sobre eles também, sobre escritores, sobre objetos que dou uma extensão da vida, que planto como se fosse um engenheiro que tenta iludir os olhos dos leitores com edificações falsas. Sempre penso que o que se escreve sobre o escrever é em vão, que ninguém mais presta atenção a nada. Essa bobagem da imagem ter vida própria, muito mais ainda. A sensação das coisas está tão virtual que mal posso esperar para ver tudo na memória que se apagou. Presto atenção nas luzes, na sombra, no feixe de luz entrando na sala da casa antiga. Morlaix é um lugar que encanta. Corre ao longo de um rio e não o rio, que ao contrário do que se imagina, ele vai à margem de Morlaix contando os anos, os séculos. A cidade parece ser mais milenar do que as margens deste rio, de tão indiferente às tempestades, nos sente por inteiro, parece compreender que ali estão vivendo de suas paredes, do seu chão, que usa as dunas para proteger fumantes, pessoas que fogem das outras, que se refugiam na solidão e que protegem pessoas da República Francesa, como costuma dizer o Tugny.
Não vejo margem nenhuma daqui de cima, do meu quarto de teto azul, cor verde manchada tons e bolores de vida. A cidade, ao lado uma marina assentada sobre construções antigas, parece flutuar e não os barcos que mais parecem prédios. Um sobrado velho, no meio do nada, afastado de tudo, quase tudo parece suntuoso e distante de quem tenta decifrar, mas de perto, sentado num café, passeando pelas ruas, tudo parece estar entranhado, em sentido, em consonância com o mundo. Tem uma residência uns 100 metros da nossa.
Vamos definir o roteiro hoje, avisa um de nós. Eu tomo meu café. Fico atento ao sol que rompeu as nuvens. Os raios entraram na cozinha como crianças correndo, de uma vez só, ali estava o sol em meus pés. Fico em silêncio. Todos saem para o pátio da casa. Eu prefiro ficar ali. Leio uma revista que compramos ainda na Espanha. Da Espanha, passamos por Paris, Saint Malo e Morlaix. Ninguém dá sinal de cansaço. Eu já não consigo beber como antigamente. Prometi ao Tugny que terminaria a minha parte até o fim de Morlaix, como a cidade fosse possível tê-la em sonhos e na espessura dos sentimentos. Um livro. Um trajeto a cumprir, entre a Espanha e Morlaix sobreviver é um dom. Minha obsessão à Barcelona se realizou. Fundiu-se num fim sem volta. Jamais pensarei dela como pensava antes dela deixar sua pele secar perto de mim. Se foi, ainda bem. Não esquecerei jamais os 3 dias que por lá passamos. Não escrevi uma linha sequer. Tugny escreveu quase um caderno. Eu escrevo direto no notebook, enquanto ele, em sua caligrafia que mais parece uma rede bem traçada, jogada ao mar, vai à cata de peixes, de histórias e de formas em que as pessoas possam ser fisgadas tal como os peixes. Eu não consigo tê-las ao meu lado. As histórias se afastaram de mim nesses dias. Elas virão mais adiante? Estou apaixonado de paixão por minha mulher. Agora ao fundo, o silêncio do quase absoluto, toca Samuel Barber. Fico emocionado. Tomo mais uma xícara de café. Aqui parece que tudo esfria rapidamente, por isso tem que se tomar o café queimando. Perco de vista os convivas. Eles foram à casa do vizinho. Ouço uma voz, Tugny me chama:
— Antonio, Antonio Paim, olha quem será nosso convidado para ser almoçado hoje...Nosso almoço, um pato assado. Já está temperado, presente. Eu iria temperar, mas os fantasmas da família cuidaram dessa parte. Como sabe, eu sou francês, os meus avós, minha família já foi dona de quase esse todo Morlaix. Parte maldita da França.
Fico ouvindo-o. Sua voz desaparece porque presto mais atenção nos meus chinelos, que ainda andam sumidos. Marie retornou com a Amelie.
Morlaix não existia antes de chegarmos? Claro, antes mesmo de inventarmos esse almoço a vida já estava aqui, mas nós reinventamos essa parte da França disse um de nós. O que pensar do tempo se aqui estamos todos reunidos? Marie viu meus chinelos no pátio e disse que ando saindo pela noite, que ando dormindo solto pela noite que nem o fantasma do velho avô do Tugny. Que falo de mar o tempo todo enquanto estou dormindo, que resmungo palavras desconexas. Existe um cão travesso na casa, Tugny disse que é do dono, esse dono da casa, o tio dele, o que nos deu o pato para assarmos. Onde mesmo estão os moradores deste lugar, pergunta Marie. E eu sei, se nem mesmo percebo por onde andei a noite passada, se fui até a praia, se fiquei no quarto, se fui viver a tempestade que já se foi. O sonho se foi. O mar aqui continua em sua cor como o teto do quarto.

Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...