segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Atravessar o céu

      by Vincent van Gogh
 


 “Você sabe o que é a chuva meu bem
É uma princesa que cai do céu
É a tristeza em forma de véu”

Jorge Mautner

 

Detonar essa dor, um drone emocional bombardeando as entranhas, do alto dos sonhos as explosões fragmentárias de uma vida que morre, estilhaços espalhados, o vento que leva para o mar as cinzas. Renasce desde o dia pós-ditadura militar, que mais adiante esteve guardado na memória do mal.

Entre viagens lisérgicas, meditações, unificações de corpos, sobreviveram atrocidades hipócritas do capital, da moralidade, dos desvãos, dos buracos no universo, das teorias indo ladeira abaixo, das utopias morrendo, nascendo no desejo, nas paixões, nos foras e dentro, no afundamento do Ser, na virtualidade da vida, na superficialidade das famílias, nas profundidades de querer voltar sem jamais ter partido, nos reencontros com o passado, no medo do futuro, nos acontecimentos intensos dos corpos, da fuga, da solidão do corpo no centro perdido da cidade, no elevador para o fim da fila, na categoria dos objetos, no significado das linguagens, nas imagens da tela, no perfil mal-acabado da insignificância da individualidade diante da dureza da falta do que fazer, e por tudo na vida, diante da morte, um leve sopro para o fim. Diante do bracear ao encontro do amigo, do sonho de ter aquela mulher diante da vidraça da casa onde se nasceu, mas jamais morreria nela, já teria partido para o tempo que a tempestade de areia clareou no horizonte. A casa da infância tem de tudo, menos o fim, tem o começo, o circular das mãos dadas, dos abraços, dos filmes, da canção dos olhos adormecidos.

Não quero mais te ver, nem tocar no céu da boca da lua ao mar, muito menos vê-la partir dos meus dias, sumir na noite, sem dizer um até breve. Não quero mais tê-la ao meu lado, sentir a respiração, ouvir tua voz cantando “And I love her” – “Bright are the stars that shine Dark is the sky”, e parte de mim em nuvem, sumindo no escuro do mar, e as mãos se tocam por última canção de um fim sem ter ao menos começado no ano de nossas vidas. Tudo foi, mesmo o passado, aquele mesmo em que te amei, hoje nada tem significância diante do caminho em que teu corpo a mover-se aos poucos desaparece do outro lado da praia escura dos amantes. Não quero mais acordar no pensamento da maresia, no mar distante da vida.

E aí vai, quantas caras, quantas bocas, muito riso, alegria nos olhos, e tantas outras, e muitas bocas e tantas fomes, quantos céus, tantos nomes, tantos disfarces, pouco texto em tantos corpos, poucas e boas ideias, tantas lembranças, tantos esquecidos, e poucos resgatados, tantos naufrágios, tantos perdidos, tantas que migram todos os dias, tantas violações, tantos machos, tão atrozes, tanta violência de gênero, tanto racismo, tanta indiferença abençoada, tantos legitimados, tantas vozes, tanto silêncio, tanta covardia em tão pouco tempo. Quantos anos para perceber tudo isso, e tantos outros como você, os que sobrevivem da riqueza e trabalho de tantos que lutam, e pouco ganham.

Ah, quanta alegria falsa em um sorriso derretido nos trópicos. E eu, diante dessa beleza estonteante, estou a zero, que nem a noite de hotel do Caetano, e a noite ameniza o calor, ativa os notívagos, descansa o cérebro e a tristeza some nas páginas do surrado Cristal, e “somos estranhos” no silêncio e na noite que precisa de estrelas, porque não é bom ir adiante como fez um dia Celan.





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