sábado, 2 de outubro de 2021

A dança dos olhos


“Não pedes nada menos que o impossível.”

Paul Valéry

 

Filamentos dançantes, o tempo movente dessas imagens não significa que, por não ter nenhum valor artístico, não pode ser igualmente original. Nasceram alguns dias atrás, bem mais próximo do que se possa imaginar. Está dentro; do ângulo mais distante da projeção das imagens, o gel baila, desloca-se feito uma bailarina que passa a mover meus pensamentos, uma projeção de estranhamento. Toma conta da alma, dos sentidos, é uma duplicidade dentro do corpo, do imaginário, uma não existência dentro do existir. Todas as possibilidades me lembram do filme que ficou na juventude, um esquecimento que volta a mover os sentidos. No primeiro instante vem um susto do tamanho da pandemia, o lado indefeso da mente, a solidão do pensamento e, uma única certeza, o estar vivo.

Depois vem a busca de informações, procurar o especialista, os que já convivem com essa fantasmagoria, neste caso, mais parece véus que dançam, voam, esvoaçando de um lado a outro, dentro de um espaço na extremidade do campo da visão. E aí, orientado, depois de exames, análise cabal, é que se vai conviver com ela até que a projeção do cérebro faça com que desapareça. Lá se vai a bailarina, a que não é da minha imaginação. Me dei conta.

E Celan diz: “Com tudo o que lá dentro cabe, mesmo que sem fala”, e pensar que o desconhecido é a presença das partes que morrem pela vida e dela nada se fixa, tudo deixa de existir, como o amor. Uma dança que já não mete medo, que apenas flutua no silêncio da projeção desse filme que só tem um espectador.

A existência é uma pequena amostra da vida, e, como Valéry, “Ora o real, ora a ilusão nos recolhe; e a alma, em definitivo, não tem outros meios exceto o verdadeiro, que é sua arma – e a mentira, sua armadura”. E diante disso todas as enfermidades que vamos vivenciando já não passam de estágios da existência, de resistência da vida diante de nós mesmos, que vamos morrendo, que vamos vendo e sentindo coisas diferentes, e o corpo se moldando mais rápido em face do que esfacela, do que se perde.

 

Universo ululante, paisagens perdidas na memória,

O mar separa os olhos do corpo sob a água,

Os que nascem pedem piedade, nada a dizer,

Os bárbaros olhos que invadem a dor recalcitrante do Ser.

A bailarina deixou em paz meus dias,

Hoje só a encontro pelas manhãs,

Saiu da sala em que dançava para mim,

O abandono é a cura para os sonhadores.


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