domingo, 3 de novembro de 2019

A escritora de San Fernando



“A atmosfera dessa amizade pura é o silêncio, mais puro que a palavra. Porque falamos para os outros, mas nos calamos para nós mesmos.”
Marcel Proust

Existem milhares de faróis espalhados, milhões imaginados por pessoas que gostariam de seguir viagem, dos que gostariam de aportar em terra segura, dos que fogem dos perigos dos homens, dos que querem se proteger das tempestades, dos que desejam uma luz para orientar seus projetos, seus navios.
 Conheci uma jovem “escritora”, ela fez questão de se autointitular iniciante de escritora, de alma já poeta, desde sempre, e que desde o tempo de escola escrevia, vivia a poesia, leitora assídua de livros de poesia. Foi em uma venda dentro do mercado San Fernando em Madri. Estávamos lá para provar tapas e tomar um vinho branco fresco, era um sábado quente, pleno outono, mas o dia estava de verão. Perguntou de onde éramos, disse, Brasil, ela sorriu, disse que tinha lido Cecília Meireles na adolescência, que gostava de música, de Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, e que amou poemas do Vinicius de Moraes, porém detectou um certo machismo no poeta. Sorri, falamos coisas amenas, e para completar, disse “nós precisamos de um rumo, eu particularmente, aqui na Espanha, em todos os lugares, nós mulheres, um farol para seguir adiante”, completou passando a “botella” de vinho e dois copos, “estou escrevendo minha primeira novela.”
Volto ao farol. Tive um sonho tenebroso, um farol, como se meu cérebro fosse parte do farol, que não conseguia mais comandar nada, que as ações não faziam mais parte nem das emoções nem da razão, por isso o farol estava aos poucos perdendo o contato com a vida. A vida dos meus sonhos se fragmentava partículas de água e restos de plásticos jogados ao mar. Como se eu fosse parte do fim de um tempo, em que o farol não teria mais nenhuma funcionalidade. Acordei empapado de suor, apavorado, arregalei os olhos para o teto branco, pensei, ainda bem que estou vendo, e que o sonho foi quase real. Entre onírico e o real, gosto de ficar entre os dois. Correr o risco ser verdade, me dá força esse limiar existente nos sonhos. 
Pensei em voltar lá no mercado para entregar um livro de contos para a moça que passou muitas coisas novas, a percepção de alguém que nem conhecia, em falou de poesia, de farol, de ter um norte para sua vida, uma saída, que para ela era escrever. Para o viajante o seu norte é poder nunca perder de vista o farol. 

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