segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Um Dia Depois

                                    By António Paim - Rouem



"Nesses dias há grandes rebanhos silenciosos de carniceiros negros vigiados pela polícia, quando a noite cai...”
Paul Nizan


Se toda dor, toda tristeza percorresse o país o que seria de mim? todo em lágrimas e dor, na veia em fusão com águas dos rios, do mar que afasta a vida da vida. Então, o que seria dos olhos sonhadores, mordido por tubarões, aves de outro mundo, botas que pisotearam, afundaram mãos e braços até não ter mais respiração.
O que seria do corpo cansado, esfacelado da luta, da fuga do mal, do não querer matar, não usar o gatilho que atira na vida? Querer voar o céu do país, inventar um paraíso para o coração, ficar menos triste, sair da prisão que só a falta faz quando tudo se transforma em ódio, faz o vento espalhar dores e mortes esquecidas no cotidiano, queimar a pele com o ácido que mata a floresta, que afunda barcos, que a presa mais atenta não consegue mais fugir da dor imposta. Onde anda a história contada lá atrás? Não sei.





sábado, 13 de outubro de 2018

Invisíveis

                           Anjo caído. Jean Michel Basquiat. Catálogo da exposição no MAM Basquiat de Paris.



O que há com aqueles companheiros que esperam calmos e silenciosos ali na plataforma, tão calmos e silenciosos que colidem com a multidão em sua própria imobilidade”   

Ralph Ellison (Homem invisível)


Não engane os vivos, a prova de amor mais bela, a oculta vem para depois do medo, o invisível luta o que pinta, quem escreve morrerá nunca. A música que toca, o texto na tela não é como marca imposta no corpo. Somos milhões pelo mundo, nunca morremos, desaparecemos, cherie. Aos poucos, nos unimos no fundo, profundezas da dor, então, estamos vivos novamente. Continuamos dançando, pintando, o canto nunca silenciará. Somos criaturas invisíveis, somos vozes e corpos que renascem da dor. Somos a mistura da arte com a vida que é ofuscada, da voz que é aterrorizada, vozes surgem de todos os lados do mundo, a invisibilidade é a poética da resistência. A liberdade está dentro dos olhos tristes, da negritude, da brancura e de todas as cores nos dentes, da pele que envelhece. Os músculos no rosto enrugado que não apaga o brilho da vida.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Paradoxo das Sincronias - Nunca se está sincronizado totalmente com o mundo

     Filme - Para sempre Mozart




“Mas sem a integração da crueldade pela vida, também não haveria vida.”
Edgar Morin 


Recolher a dor, deixar o tempo tomar conta do instante vivido, deixar de ir ao encontro do que anos atrás se fazia presente, quando a memória podia ser a guardiã. Nesta viagem de agora não estar nem no início e já temer o fim abrupto do mal que surge no horizonte: estrondos e explosões. O tempo que não foge do corpo, está colado nas paredes da alma, invisível é parte de todo o universo. Um breve esquecimento, o tempo que te salva é o mesmo que passa sem retorno programado. É como ter o controle da memória sem mesmo saber o caminho certo por onde ela anda esse tempo todo. Reprogramar a vida, autoanálise, pensar que os encontros sempre foram parte importante da formação da pequena história de cada corpo. Aqui estou. Reflito sobre a capacidade de encarar a vida sem perder os fios que ligam a memória ao tempo.
Se o passado é feito de portas que se fecham, abre, independente do mundo exterior, que se apodera do signo, a palavra gravada nas lacunas do corpo e do pensamento a se mostrar na dor e completude. Então, o que dizer da dor, esse desvio do ato de encarar a realidade e ao mesmo tempo de desvendar a solidão do Ser no mundo?
Passo dias a pensar sobre alguns temas, a dor, essa massa sem corpo, essa estrela vista por dentro e por fora, essas cores que mudam conforme os dias. O tempo e a memória são o mesmo horizonte aos olhos, a razão do corpo se manter teso, pronto para nadar até o outro lado. De repente surge o momento em que me vejo dentro d’água, entre a respiração, os braços e as pernas que, no movimento contínuo, me levam ao pensamento sublime. O único Deus que existe para o meu Ser é o poder ser livre, poder pensar e me solidarizar com o mundo. Com o que resta dele. Os amigos partirão comigo? Alguns sim, outros ficarão no meio da guerra, a vida que suga até o último cigarro, a última lágrima.
O que pode estar acontecendo do outro lado? Esse é o único detalhe que escapa dá lógica das coisas tangíveis e das pensadas diante do mundo e do Ser no mundo. O desejo não se esgota em si, a vontade, fruto de um tempo em que o Ser se torna domínio absoluto da alma, da certificação de estar no início e no fim de si mesmo.
É como fazer seu próprio filme. Acontece que nasci no berço mais humano do século XX, do ventre materno nasceu a fome de viver à risca a vida em toda sua loucura. Não entrego meu pensamento livre ao ódio que tenta justificar o mal diante de sua falta de aceitar a diferença. Por isso, em alguns casos, a dor é mais latente, alguns vivem mais intensamente.
Gosto de pensar o texto movido por uma câmara imaginária, que aproxima mais e mais daquilo que tem o significado da linguagem; o que está visível, o que narra, e principalmente o que oculta, é o submerso vindo aos olhos do sentido. O que antes era esquecido, não visto, pode tomar o espaço mais preciso na narrativa.


Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...