terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A pedra - Morlaix




“Um pedacinho de madeira, um martelo e um prego resolveriam tudo: a barreira entre ele e o mundo lá fora seria muito mais real.” Paul Bowles


Em pleno inverno Morlaix aparece viva no meu coração. Acordo congelado. Perdi as cobertas no meio da noite, dentro da noite sonho com barcos que não retornam do mar. A praia fica em desespero nestes momentos. Se vê familiares caminhando de ponta a ponta na faixa de areia, da praia até as pedras, no lugar mais alto da baía. Cachorros perdidos a esmo em busca de vestígios dos seus donos. Uma senhora com os olhos nos latidos dos cachorros, o olhar perdido na brisa fria que vem do mar.
A porta do quarto está aberta. Acordei empapado de suor. Procuro por Marie, onde estaria se já era um outro amanhã? Ela já está em pé. Puta que o pariu, fico desnorteado quando ainda mal consigo reconhecer o habitat, quanto mais o tempo em que estou. Procuro chinelos embaixo da cama e não encontro nada. Disseram que nesta casa se tinha de tudo, quase tudo, e vou de meias até o banheiro fazer a higiene matutina. Desço até a cozinha. Estão no café da manhã, na grande mesa que fica na cozinha, ao fundo a música sem definição, audível aos olhos acordados dos convivas transitórios, não sei que música toca na vitrola digital pirata, mas pouco importa porque ainda rola um café quentinho. Juntos. Estamos em viagem já uns 10 dias, contei os dias, fui o primeiro a chegar, cada um de país diferente, então, isto é, o correto é uns 12 dias, uma conta que comecei depois do meu primeiro vinho na cidade. Marie veio no início da outra manhã. Ainda tenho dificuldades com o levantar em lugar estranho. Ela chegou de um lado da França, pelo o outro lado da cidade, de carro; os outros chegaram, por incrível que pareça juntos da Bretanha mesmo. Não tão de longe, daqui de perto. Estava acostumado com o Brasil ou com as histórias dos lugares distantes da Rússia até a França contada por Tugny. Houve um erro primário nas minhas contas, não era um problema de memória, mas o simples fato de acreditar que existe uma lógica histórica movendo meu pensamento como início de um planejamento para contar os dias. Eu fiquei aqui patinando no abrir dos olhos. Lá estavam eles tomando café.
Os dias em Morlaix. Um encontro entre amigos, um estudo para escrever um livro, depois de anos como editor agora retomado nesta manhã em que retoma o trabalho silencioso em escrever em sua parte, mas ainda deverá submeter as discussões com Tugny sobre como deverão continuar as escritas.
Então, retomo a chegada de Tugny e Anne, é que existe uma prática cotidiana do casal, uma combinação aleatória de viagem. Parece que todas as linhas de trem passam em Rennes, de lá se distribui aos outros pontos do país, mas não é isso, eles se encontraram desta forma pelo desejo de viajar no mesmo trem. Aqui já temos o princípio, disse a ele bem baixinho, no ouvido, que o fato dele chegar desta maneira, de alterar nosso roteiro é a maneira mais clara de algo inacabado que será o nosso livro. A impressão de que linhas que se cruzam, de sonhos que se aproximam de sonhos, mais parece o “tempo de besouros” que só existe em países asiáticos, “é um indício”, diz Tugny, porque agora eles estão em Morlaix também. Isso parece ser coisa da cabeça de quem escreve em nome do não esquecimento. É uma história estranha, porque a lógica dos encontros, a deles, é sempre um deles já estar no lugar à espera do outro, mas linhas do tempo e sonhos precisam religar. Isto é um sinal, penso no Paul Auster
“Fica claro que vocês concordam na maioria das coisas, mas de maneira nenhuma em tudo, e você gosta de brigar em torno de suas diferenças. Suas discussões sobre os méritos relativos de vários escritores e artistas têm um certo aspecto cômico, porém, pois raramente acontece de um dos dois conseguir convencer o outro a mudar de opinião.”


É o que o tempo faz a vida. As pessoas que vivem como viajantes desfazem o sentido absoluto de contar o tempo através da razão acumulativa, ou melhor, desmantelam o pragmatismo que existe no mundo delas. Mas lá está Tugny com seu cigarro. Lê um livro envelhecido sem capas. Disse que encontrou na velha cômoda do quarto o livro de páginas da cor da mesa grande da cozinha. Parece que tudo aqui se assemelha com o passar dos anos. Lembro novamente que perdi os chinelos e novamente pergunto se alguém o viu. O sol lá fora chegou aos poucos e agora entra com toda força na porta da cozinha iluminando uma linda prateleira com pratos e cristais que não revelam o tempo de nascimento, a origem da madeira, mas isso hoje não tem importância alguma; o que nos revela o amanhã, como diz Tugny, é o que atrai os corações.
Depois todos silenciam para apreciar a música ao fundo — Os escribas da história só existem porque deles um sentimento existe que não tem origem certa, dizem que é no Ocidente, mas sei lá de qual lugar mesmo o seu começo, um movimento para além do racional que emerge das profundezas dos sonhos.
Decerto eu virei um abade embebido de vinho de Borgonha e a culpa é do dono da casa que nos presenteou com algumas garrafas. Todos contam histórias em francês, espanhol e inglês, eu só penso em português. Minha mulher está numa conversa acirrada com a mulher do Tugny sobre a história de Morlaix, sobre a importância de Corbière em nossas vidas. Tugny, lá do canto da cozinha, fala em tom alto, “Qual a importância de Corbière nos dia de hoje, alguém saberia a resposta? Sei que vocês logo já estarão pensando que o fato de ninguém o conhecer mais é o ponto da sua legitimidade, mas não é isso, alguém saberia? E aí, António Paim, tem alguma pista?” Ninguém responde, Tungy esquece por hora, e diz que à noite será reveladora, depois da quarta garrafa de vinho imagino. Certamente ele está se divertindo.
Volto ao tempo das histórias, e o objeto é o trajeto que nos leva ao tempo, um retorno regado à café, uma viagem aquecida do frio ao sol que nos alegra em Morlaix.

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