quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Primavera irracional

        Lisboa XXI - António Paim                          
 

“Eu fechei os olhos para lembrar com todos os meus votos a verdadeira noite, a noite liberta da sua máscara de horrores, ela, a suprema reguladora e consoladora...”

André Breton

 

Equinócio que esconde a verdadeira face do mal, os homens não descansam. Nunca descansam. A humanidade vive para atravessar todas as adversidades, alguns destroem a vida, queimam as ideias e deixam a Terra arder. No hemisfério dos sonhos, a vida é salva pela natureza, os homens são excluídos pela ganância, que só existe no cérebro dos que dizem ser racionais. Nada separa o que está em pleno movimento de viver da finitude. Existem os que creem no domínio das questões espirituais pelo simples fato de não conseguir compreender a própria vida, o que tem nome, o que é nomeado. A saída é se deixar levar pelos momentos meditativos. Nenhuma contrariedade à meditação, todo ato de pensar é um convite, mesmo para os que só sabem buscar o intangível por medo de se darem conta de que  contribuem para a destruição do planeta. 

A vida arde, sente-se o cheiro desfilar num corredor de destruição por exércitos do bem, daqueles que usam os deuses para se garantir na vida enquanto dura e pouco sabem que nada é mais inócuo do que achar que a Terra tem um deus. Tanto faz a unicidade da libertação dos deuses. Nunca mais se voltará à ilha perdida, e tudo é mitificado para alimentar as almas dos escolhidos. Melhor se perder como um nômade pensador. Se mata em nome de ideal, do deus de cada um, existe um pedaço de terra que arde. O planeta é um corpo estranho à razão idealizada em nome de um deus. Se soubessem que o organismo está agindo nas entranhas, nos mistérios da vida.

As estações estranham o trem dos absolutos, dos que negam a própria racionalidade porque inventaram um jeito de querer se salvar, a possibilidade de viajar como se o comboio fosse apenas dos escolhidos. Todo o escolhido é parte da excrescência humana, dos que eliminam porque existe um absoluto nas ideias, dos que silenciam porque o esquecimento mata tudo que vê pela frente. O equinócio é o momento para meditar no vazio do Nada. A primavera é uma música da linguagem perdida.

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