sexta-feira, 1 de junho de 2018

Na outra margem

     Toulouse - France




“Nosso futuro é tão irrevogável
Quanto o rígido ontem.”
Jorge Luis Borges
(do poema Para um versão do i ching)

A dor é minha, a semente que guardo nos olhos, fonte de energia que trago no peito, o alarme da vida, o sopro do coração, a braceada perdida no tempo, o levante dos invisíveis, o Nada e o nadar no mar, a perdição dos esquecidos, a morte dos ricos, o apodrecimento dos pobres, o casamento dos notívagos que, soturnos, vagueiam noite adentro até encontrar o primeiro templo e lá jurar amor eterno a Deus e esquecer seu Outro, o lado da vida está aberto ao desconhecido.
A miséria de poder ver-se nu em águas de um rio sujo que preserva a vida dos homens e mata os peixes já sem oxigênio. Um dia esse poema matará o homem em sua redoma de dominar a natureza. A irredutível vagabundagem dos poetas em quererem ser malditos e esquecer a linguagem dentro de si. O desperdício do olhar que não resulta mais em poética. A doença apressada em ódio de uma sociedade que se afunda em filas e fugas do sonho para viver só a realidade. Enumerar não uma só razão para atravessar o rio sujo, e sim várias para tentar escalar paredões e prédios tal qual o malinês imigrante.
Quase morto, vejo diante do sonho o espelho, o não acordar nesta vastidão destruída pelas águas que invadem uma cidade, todos a fugir para o cume mais distante; e lá, quase ninguém para conversar, encontro um velho sentado em uma pedra, imenso, dedos longos, esbaforido, olhar a salvo de um fim que nunca termina, nele  encontro o lado de todos os velhos amigos que morreram nessa travessia, todos os desconhecidos em suas fanáticas formas de viver, de torcer, de amar, de matar e desprezar o Outro. Me vi entre eles, saio do rio em direção ao velho ofegante, em plena forma de viver vou recitando uma canção até o seu encontro. − O fim não existe mais, a continuar vamos avante, de som em som cantamos a vida que está a começar, o tempo que não se difere de mais nada, ando invisível a tudo isso, por isso estou aqui deste lado do rio.

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