sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A minha esquerda - Edgar Morin




PREFÁCIO
Retornemos às origens
"Se você não espera o inesperado,
 não o encontrará"
Heráclito

            A esquerda. Sempre me inspirou repugnância esse A unificador que oculta as diferenças, as oposições, os conflitos. Isso porque a esquerda é uma noção complexa, no sentido em que esse termo contêm em si unidade, concorrências e antagonismos.
            A unidade está em suas origens: a aspiração a um mundo melhor, a emancipação dos oprimidos, explorados, humilhados, ofendidos, a universalidade dos direitos do homem e da mulher. Ativadas pelo pensamento humanista, pelas ideias da Revolução Francesa e pela tradição republicana, essas origens irrigaram o pensamento socialista, o pensamento comunista, o pensamento libertário no século XIX."
            A palavra libertário centra-se na autonomia dos indivíduos e dos grupos, a palavra socialista no aprimoramento da sociedade, a palavra comunista na necessidade da comunidade fraternal entre os humanos. Mas as correntes libertárias, socialistas, comunistas tornaram-se concorrentes. Além disso, no cerne do socialismo houve concorrência entre o socialismo estatal e o socialismo libertário, entre o revolucionarismo e o reformismo.
            Essas correntes entraram não apenas em concorrência, como também em antagonismo e alguns desses antagonismos tornaram-se mortíferos. Assim, é um governo socialdemocrata que aniquila a revolta espartaquista na Alemanha, é o comunismo bolchevista que, depois de tomar o poder, elimina socialistas e anarquistas, o que o comunismo stalinista continuou a fazer ainda mais radicalmente por toda parte onde se impôs. Foram o Komintern e o Partido Comunista alemão que, em 1931-1933, denunciaram a socialdemocracia como um inimigo pior do que o nacional-socialismo. Foi a Espanha republicana que no meio de seu combate contra o franquismo, estimulada pelo comunismo, elimina o anarquismo catalão e aragonês, bem como o esquerdista POUM, Partido Operário de Unificação Marxista. As frentes comuns, as frentes populares, as associações da resistência não foram senão momentos efêmeros. E após a constituição da unificação do programa comum, a vitória socialista engendrou a asfixia do Partido Comunista com um beijo de morte, cujo habilíssimo estrategista foi François Mitterrand.
            Essa é a razão pela qual sempre combati (em vão) o A esclerosante e mentiroso da esquerda sempre reconhecendo que existe uma unidade de esquerda nas origens e aspirações.
            Constatamos agora que as aspirações de esquerda sempre se fundaram na obra de pensadores. As ideias Iluministas de Voltaire e Diderot reunidas às ideias antagônicas de Rousseau irrigaram 1789. Marx foi um pensador extraordinário que inspirou simultaneamente a socialdemocracia e o comunismo até que, integrando as críticas de Bernstein, Kautsky e outros, a socialdemocracia se tornou reformista. Proudhon foi o inspirador de um socialismo não-marxista. Bakounin e Kropotkin os inspiradores das correntes libertárias.
            Somados aos de Tocqueville, Max Weber, Freud, os pensamentos desses autores nos são necessários, mas insuficientes para pensar nosso mundo. Somos compelidos a empreender um gigantesco esforço de repensamento que possa integrar os inumeráveis conhecimentos dispersos e compartimentalizados a fim de considerarmos nossa situação e nosso futuro em nosso universo, em nosso planeta, na biosfera, em nossa história. Cada um desses pensadores pode e deve continuar a nos inspirar, mas mesmo - e sobretudo - o pensamento do espantoso Marx apresenta carências fundamentais e insuficiências para se compreender e diagnosticar o curso da História nos séculos XX e XXI. Cada um deles não apreendeu senão uma porção, um fragmento da realidade humana. É para reconhecer e remediar essas deficiências e lacunas que proponho o texto Em busca dos fundamentos pedidos.



Fragmento do livro "A minha esquerda" de Edgar Morin
Editora Sulina, 2011
Capa: Eduardo Miotto
Tradução: Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco






 

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