quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Cadernos da Primavera



Et nous avons posé nos fronts contre la vitre
Où la nuit sanglotait...”
André Gide


A vida corre longe da morte porque teme encontrá-la logo ali, então, aqui da minha janela, onde estou a ver tudo, o sol que não chega a existir por completo, o sol que aquece o corpo, o sol que ludibria a noite da linguagem que ziguezagueia o ambiente fechado à procura de uma fresta, e das possibilidades de ficar a ver o tempo nos trilhos indo para o distante dos olhos, é que torna a existência esse não alcançar por inteiro.

Daqui, permaneço com o rosto colado à janela, como na infância, embaciando o visível a esconder o lado de fora, molhado o vidro do lado de fora, o vapor que a respiração fazia ao colar o pensamento. A saliva entre as mãos, o movimento do rosto, a visão de quem se aproxima ao longe, o som dos passos, depois o hálito que se aproxima mais e mais e um rosto lindo de lábios grandes, de pele que desponta em todas as cores, que me atravessa ao meio. Diz a voz: “vamos todos ao teu lar, vamos invadir tua casa como se invadíssemos um país” da mulher com gosto de água da chuva.  E como se tomando uma forte baforada enlaça nossas armas de uma linguagem límpida e intrínseca que discorre a todos os poros, que marca a existência com a primazia do compreender: o que existe além do desejo? Ao ataque, armas de sonhos. Ah, elas invadem mesmo, penso. Que força tem os olhos dela! ...é a mesma cor do que penetra os sentidos a me jogar para dentro do quarto repleto de uma força de invasora. Então, quem é você mesmo, uma pureza entre o dia e a noite? Como o rosto colado no vidro, a primavera vem no brilho dos desejos, afasta as lágrimas do vidro que seca ao ver o dia brilhar lá fora e se esquece de tirar a testa colada nas vidraças do tempo.
 "Aristóteles tinha, pois, razão a este respeito quando afirmava que ser bom a inventar metáforas era ter olho para as semelhanças."
Paul Ricouer

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