sábado, 23 de junho de 2018

Paz e Trégua


“Estávamos cansados de todas as coisas, cansados especialmente de ultrapassar inúteis fronteiras.”
Primo Levi

Meus livros. Leio e reescrevo o pensamento solto que existe na leitura que faço do ainda existente das páginas dos livros escolhidos assim por mim.
A dor é o fim, minha alma é como amarelecido das folhas surradas, manchas do café, do rastro do vinho, da solidão de ler o fim de “A trégua” de Primo Levi. Um dos mais impressionantes e dolorosos fechar de páginas que tive. E se eu fosse o editor, certamente, choraria ao cabo de sua confecção. Isso não acontece mais, terminar uma edição na cumplicidade do fim e o início de outro momento, no tempo dele existir, a reprodução parece ser a solidão que não se esgota. O livro está dentro desta história.
Na próxima guerra não haverá renascer, os escombros serão do tamanho da dor da Mãe-Terra arrasada. Morta por seus filhos, ela no secar dos olhos, sacrificará a existência em nome dos ideias que se perderam nas religiões, raças, e no outro lado político, destruidor da diferença.

O poder e a vontade “Ser” o “Outro”, o retrato diferente dos olhos de Levi no final de ”O despertar”, talvez seja para além da imagem, da ficção e da linguagem afiada dos manipuladores do mundo. Talvez tenhamos a vida depois disso tudo, dos nacionalismos revestidos de ética, e boas mentiras hão de passar a vigorar nas fronteiras dos corpos. Estamos imersos. O Território poderá ser apenas a linha imaginária que se perdeu no coração dos corações puros que retornam às escrituras, onde deus existe um homem há para se fortalecer e se impor. Onde a fronteira finca sua cruz, sempre teremos um grupo, uma cabeça a pensar, e que sua vida é e pode estar no fim. Por que outro um existente nos olhos do lado de lá pode ser uma ameaça à vocação única de ter direito de estar demarcado na fronteira do lado de cá. 

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Na outra margem

     Toulouse - France




“Nosso futuro é tão irrevogável
Quanto o rígido ontem.”
Jorge Luis Borges
(do poema Para um versão do i ching)

A dor é minha, a semente que guardo nos olhos, fonte de energia que trago no peito, o alarme da vida, o sopro do coração, a braceada perdida no tempo, o levante dos invisíveis, o Nada e o nadar no mar, a perdição dos esquecidos, a morte dos ricos, o apodrecimento dos pobres, o casamento dos notívagos que, soturnos, vagueiam noite adentro até encontrar o primeiro templo e lá jurar amor eterno a Deus e esquecer seu Outro, o lado da vida está aberto ao desconhecido.
A miséria de poder ver-se nu em águas de um rio sujo que preserva a vida dos homens e mata os peixes já sem oxigênio. Um dia esse poema matará o homem em sua redoma de dominar a natureza. A irredutível vagabundagem dos poetas em quererem ser malditos e esquecer a linguagem dentro de si. O desperdício do olhar que não resulta mais em poética. A doença apressada em ódio de uma sociedade que se afunda em filas e fugas do sonho para viver só a realidade. Enumerar não uma só razão para atravessar o rio sujo, e sim várias para tentar escalar paredões e prédios tal qual o malinês imigrante.
Quase morto, vejo diante do sonho o espelho, o não acordar nesta vastidão destruída pelas águas que invadem uma cidade, todos a fugir para o cume mais distante; e lá, quase ninguém para conversar, encontro um velho sentado em uma pedra, imenso, dedos longos, esbaforido, olhar a salvo de um fim que nunca termina, nele  encontro o lado de todos os velhos amigos que morreram nessa travessia, todos os desconhecidos em suas fanáticas formas de viver, de torcer, de amar, de matar e desprezar o Outro. Me vi entre eles, saio do rio em direção ao velho ofegante, em plena forma de viver vou recitando uma canção até o seu encontro. − O fim não existe mais, a continuar vamos avante, de som em som cantamos a vida que está a começar, o tempo que não se difere de mais nada, ando invisível a tudo isso, por isso estou aqui deste lado do rio.

Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...