segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Auto de fé da resistência

                       Lisboa - Ler Devagar





“Assim se explica que até nossos dias acreditem mais firmemente na existência de uma cor quimérica do que na de Deus.” Elias Canetti


Canetti, nasceu na Bulgária, judeu de origem serfadita, a língua materna espanhola, teve sua formação em mais de um lugar, circulou pela Inglaterra, depois Viena e adotou o alemão para escrever. Com doutorado em Química, a escrita literária nunca foi deixada de lado, tornou-se um estudioso da psicologia. Como Otto Maria Carpeaux[1] escreveu: “Precisava-se, aliás, de um esforço de reportagem literária para identificar a personalidade desse autor esquivo.” O romance que ofuscou os nazistas, que foi destruído na época da cegueira humana, Die Blendun – que ganhou em inglês o título Auto de Fé –, abriu meus sentidos nos anos 1980. Ainda hoje, volta e meia retorno a ele, o inesperado surge nas leituras e no que separa o leitor de uma grande obra. Logo uma obra que tem o personagem que se afunda em sua erudição, na incompletude do mundo, no que o torna humano e o tira da vida. Pois o cotidiano requer mais que erudição, às vezes um esquecimento quase que alienante da própria compreensão da vida.
Nem um pouco me sinto triste nos voos que faço em Canetti, penso, é minha autoanálise, meu veneno e água, um equilíbrio que me deixa ávido para continuar gostando da obra e apostando na vida. Sem me jogar com todos os livros no abismo da mediocridade, creio que um livro não é apenas didático, é poético, e todo signo que brota da linguagem, a construção de uma história é que salvam a memória para retornar a outros livros.
Um livro aniquila tudo que existe, a recordação deixa de existir diante do êxtase da leitura final, tudo acaba. Diante do inominável fiquei prostrado, misto de solidão com vontade de esquecer o presente. Logo eu, um presenteísta, anárquico, naquela época vivia às voltas com as cruzadas modernas da estética. Uma completa algaravia enlouquecida e sem nem um nexo lógico. Eles vinham e diziam, “que leitura mais obtusa, quase um misto de descendente de Musil com a decadência dos aliados de Heidegger”. A partir desse dia, do momento da apoteose da linguagem modernista, me senti o próprio guerreiro do esquecimento. Nunca fui ao extremo das coisas, do direito a dizer qualquer bobagem, perdido no fim do Brasil, a leitura foi a tentativa de compreensão do mundo.
Aí me vi em o Auto de Fé, de Canetti, logo este Kien, em que via todo mundo desmoronar na falta das unidades da estética do cérebro, a preservação da vida se dava através do livro. Pensei, sou ele e sou o outro lado. Dane-se, estamos saindo da curva do capital ortodoxo para o fundo dos 20 a 30 anos de pós-68. Ainda bem que só tive um percalço de lá para cá. Ainda vivo, retorno meus olhos, meu interesse ao autor, leio e releio sua obra...O romance do qual sempre quis ser autor não foi um Camus, foi um Canetti. Tomo meu vinho e retorno à elegância de sua linguagem.
Salve o leitor, o livro sempre existirá, em oposição à acepção ontológica da obra, o entorno da linguagem é quase uma fenomenologia existencialista da exclusão do leitor – pensava. Hoje penso o contrário. O leitor morre e o livro viverá esquecido. Os incêndios são esporádicos, os imbecis estão soltos e pensam que são guardiões da cultura no domínio da existência e criação. Um livro é o que te tirar do marasmo, mesmo o personagem mais misógino possível, uma construção da erudição é sinal da fraqueza das edificações que estão a esmorecer. Assim me sentia lendo e refutando aquele livro na primeira vez, até perceber os caminhos a que ele podia estar levando meu entendimento sobre os anos que tardiamente fechavam o século XX.
Canetti não subjuga o leitor a desistir, pelo contrário, ele é dos clássicos que nos dá alento para resistir aos livros que caem no abismo, aos livros que são incendiados, nas obras que são excluídas do mundo pela cegueira dos homens, que nunca deixará de existir.



[1] Carpeaux, Otto Maria. História da Literatura Ocidental, vol. 4. São Paulo: Leya, 2012.
Texto publicado no jornal Correio do Povo - Caderno de Sábado - 24/02/2018.



sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Ensaio dos Possíveis

            Art by Gleb Goloubetski


“Cada indivíduo é o centro do universo, e é apenas porque o universo está repleto de tais centros que ele é precisoso.”
Elias Canetti


Um belo dia, manhã, uma manhã cinza no dia de um homem, ele acorda. Os pensamentos são formados nas madrugadas, nos dias, no silêncio do sono. A sua formação não é uma enciclopédia, um compêndio, um quadro estático na parede sem cores nem relógios. O formato que se tem é que a vida é uma sucessão de acontecimentos. Teorias ao longo dos séculos.
Esse homem atravessou parte do ocaso do século XX, vivendo intensamente as mudanças sofridas e impostas no Ocidente. O Ocidente impôs. O pensamento no mundo ocidental, uma parte viva do mundo, que está na Complexidade de Morin, não serve mais como uma simples descrição de fenômenos, mas o é, também. Nesse belo dia, o homem percebe que é o mesmo dessas alterações, que é parte de uma mesma coisa, de tudo no mundo. Não é literatura; é a realidade esfacelando-se a partir do momento de cada manhã em que o homem coloca seus pés novamente no chão. A literatura é a mesma que salva o sonho de um dia acordar no absoluto dos conceitos. E como diria Morin, através da literatura o homem torna-se o que produz “pelas ideias”, e neste acordar que todos fins se mesclam com o hibridismo do ensaio. A vida é isso.
As ideias sobrevivem porque os homens as alimentam de novas roupas e novas informações e conforme as necessidades; os mesmos homens que as negaram tratarão de dar-lhes forma diante dos acontecimentos.
 As teorias sobrevivem porque os homens se espalham pela terra e, como diz Morin, o desconhecido não é apenas o mundo exterior e, sim, sobretudo, nós mesmos. As crenças nas verdades, na lógica ocidental, nos fatos e no Cotidiano da comunicação entre esse homem e todos pelo mundo afora e adentro, do Ocidente ao Oriente, da rua à casa, do real ao hiper-real, do conceito ao Imaginário[1], da linguagem à comunicação, e tudo na esfera do vivido, do jogo, permaneceu porque o visível passa do inteligível ao sensível e ao invisível. Lembrar de Heidegger, do “Ser” como a compreensão “indeterminada” e do mesmo modo “sumamente determinada”. Do homem que ao acordar personagem se dá conta de que ele compreende a palavra “imaginário” e com ela todas as derivações, as variações possíveis, ainda que essa compreensão pareça indeterminada. Inacabada. Esse imaginário povoa seus dias. Ele retorna ao “Ser” e em Heidegger: “O que compreendemos, o que se manifesta, de algum modo, na compreensão, dele dizemos, que tem sentido. O Ser, porquanto, é simplesmente compreendido, tem sentido”.
 Do possível ao impossível, esse homem, dentro da complexa colcha do pensamento, será sua única saída para o mundo. O seu mundo diante do que está em discussão, sendo que em um belo dia, esse homem acordou fora do apenas inteligível. Foi através da “brecha microfísica” que abrira o espaço para o sujeito se postar diante do objeto, diante do próprio decreto mal-aventurado da lógica ocidental, que percebeu que o acaso contribuíra para as suas novas manhãs.





[1] A partir de Castoriadis quando diz que no “por-vir-a-ser emerge o imaginário radical, como alteridade e como ‘originação’ perpétua de alteridade, que figura e se figura”. A Instituição Imaginária da Sociedade. E o Imaginário como figuração de imagens que é parte do presenteísmo de significados ou sentidos em Maffesoli.


sábado, 3 de fevereiro de 2018

Unidade Quebrada

                   Mato Grosso - visto de dentro e do alto.





“Liberdade de usar qualquer tom.”
Albert Camus

Olhos dos seus olhos, unobtainuim[1] para os sentidos. Olhos que escondem e desvendam a quebra do real. A ilusão é mais fácil enquanto dispensamos do vocabulário das aparências. Nem toda realidade exclui o que é aparente, pelo menos do exercício de refletir sobre a importância de quebra as paredes entre os fatos e o que está por detrás do significado. Certo, se tem o signo, é claro, tem a importância de dizer algo, de revelar o que está escondido. Velha e surrada poética é que salva a reflexão diária, o cotidiano precisa do que se vê para abstrair e compreender a complexidade do que foi visto, das imagens.
Diria, reserva raríssima do destino que perdido no sono acorda do real na claridade escura do sonho. O sol é uma imagem diante do momento, calor dos corpos, do estar fora do contexto político e é mais que real na solidão da noite.
É nos olhos que não alcançamos a fotorealidade de imagens, nem o som é um tilintar especial aos bons ouvidos. Se a realidade é para Hegel a unidade premente, toda a intenção não passa de um objetivo obscuro ao real. Então, vamos lá, a esmo acordar do sonho. O real não é garantia de vencermos o acaso. Ainda bem. Dispenso o estoicismo. Não há razão divina capaz de semear o real o mundo das coisas. No século XXI, o determinismo dos favorecidos por normas e razões determinadas sob o cânone das mídias, por exemplo, é mais um apenas, determinante que pega o comboio para o futuro.
Nada existe de definitivo quando pode haver a quebra através da reflexão, dos opostos, pois, a mesma arma que se tem para forjar, golpear a realidade é a que desfere o tiro que estilhaça no corpo do real. Se a humanidade não tivesse em que se preocupar viveríamos apenas das construções divinas, dos determinantes das escolas sofísticas, de neutralidades das leis, do cientificismo pronto para nos levar ao futuro.
Os loucosnews andam soltos, vociferam, armam notícias, se vestem de realidade e engolfam multidões em suas previsões de bombásticas denúncias. Mas pior, é o revestimento de um falso consenso, da tentativa de iludir com o apaziguamento retórico, vestido de legitimidade, bordado em novas news prontas para arrebatar e fazer com que boa parte das pessoas tenham a sensação de que agora o mundo vai melhorar.
Por que jogamos um jogo? Não é só para vencermos, é para esquecermos o fim do jogo. O ato da reflexão já é o princípio de jogar na vida, com todas as peças da complexa tarefa dos momentos que em que se está a jogar para poder aprender Viver diante dos Impossíveis e Possíveis dias que possamos quebra com a unidade imposta.

“Desse modo, um pensamento que traz algo de novo para o mundo por força há de se manifestar através das ideias já prontas que encontra à sua frente e arrasta em seu movimento; aparece assim como relativo à época em que o filósofo viveu: mas o mais das vezes isso é apenas uma aparência.”
Henri Bergson




[1] O que se pode encontrar fora do Real, o "inobtível" (em Inglês, unobtainable) aqui é parte da textura, como bem escreveu Bergon, H. “Pode se tratar de uma preparação para bem viver”.

Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...