terça-feira, 27 de dezembro de 2016

O leitor do século XXI consegue ser sartreano?

     Lisboa                          



“Eu queria que, ao renunciar à torre de marfim, o mundo me aparecesse em sua plena e ameaçadora realidade, mas não quero que, por isso, minha vida deixe de ser um jogo. Por isso endosso inteiramente a frase de Schiller: ‘O homem só é plenamente homem quando joga’.”
       Jean-Paul Sartre (Diário de uma guerra estranha – Caderno XIV – 1940)
“Se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece com o resto?”
Pascal Mercier (Trem Noturno para Lisboa)




Quais os olhares que existem sobre o Jean-Paul Sartre no século XXI, de que forma o l’adulte terrible é visto hoje, existe espaço para o homem sartreano neste século? Me vem essas questões quando busco uma de sua obras que mais admiro, O ser e o nada. Há uma pertinência na leitura histórica dos festejados filósofos do século passado, não sou adepto ao modismo, pelo simples fato, a afetação beira quando se determina o que é bom ou o que é lixo.

Sartre soube viver como poucos o que sempre desejou, o homem que sempre buscou, o que gostaria de viver e não aquilo que imaginaria viver segundo a moral vigente de época impunha. Ele bem disse em seu primeiro romance A Náusea, só há existência no personagem Roquentin, ele se perde num presente estranho e duvidoso. Isso é que me levou a procurar mais sobre Sartre, sua forma de pensar, narrar o mundo naquele momento histórico tinha lá suas idiossincrasias. Tudo que existe é por nossa escolha. Sartre soube fazer muito bem seu caminho, escolhas que agradaram muitos; outros o abominaram profundamente e nada disso foi suficiente para ofuscar a sabedoria do homem que viveu intensamente seu tempo. As críticas não importam hoje em dia, ele foi um monstro sagrado do Século XX que construiu sua vida com atitudes, livros, textos e mais textos, com opiniões desastrosas e com sacadas inovadoras que provocaram a ira dos poderosos, dos santos, dos deuses e admiração de uma legião de homens e mulheres. Antes de tudo isso, Sartre soube fazer o pensamento mover-se, soube filosofar, é o que importa agora para mim, em pleno Século XXI, o tempo em que o pensamento anda escasso.
O que restou da obra de Sartre? Ele não inventou nada, o “Nada” hoje é parte do acaso das verdades absolutas. A aversão que se nutre ao pensador do existencialismo, não se dá porque ele “errou”, ou narrou de forma equivocada seu tempo, mas por outros motivos, o pensador-escritor é deixado de lado por nossa tendência de querer uma mensagem, melhor, no criticismo moderno, querer ver a explicação mais correta da realidade. 
O erro de Sartre foi reivindicar nos escritores uma militância, que fossem todos à esquerda, submetidos a regras rigorosas da escrita, era a tentativa mais absurda que tinha em “Crítica da razão dialética”, de conciliar o marxismo com o existencialismo.

O que nos leva a consciência de alguma coisa é o processo unir o existir e o saber. Isso só se torna possível na experiência literária, ensaística do Sartre. Ele foi além dos princípios fundantes da filosofia. O experimentar poder ter sido também sua perdição. A conciliação do existencialismo ao marxismo foi um tiro da cegueira do século XX no escuro. A imposição de que todos escritores fossem de esquerda era no mínimo a bala perdida de sua reflexão. Mesmo assim, as circunstâncias que se deu esse adágio, que mais servia aos inimigos, é que o levou a ser um que sempre foi, do mundo das coisas para sua realização em si. Eis o existencialista em plena contradição. A liberdade é parte deste homem contemporâneo, um legado que me leva a apreciar sua obra quase na sua totalidade.

Nem todo Sartre é datado, embora sua filosofia em O Ser e o Nada busque de forma incessante explicar a existência do Outro além da minha existência, o contrário seria estar distante de seu próprio tempo. O moralista permaneceu em sua vida e obra, sua certeza da liberdade diante de um tempo que embotava o homem. Sartre foi um revolucionário de sua época. O legado é extenso, é danoso a outro tipo de moral. Não resta dúvida que o mundo precisa de homens que rompem com a moral vigente. A vida é uma experiência e não algo que é simplesmente dado.

  A vida é o Tempo sem tempo a preencher o ar com inaudito das coisas pensadas. Ontem, com aquilo que estamos tateando, o perceber da condição para se conhecer. Hoje, com o que restou daquilo que não pudemos compreender na sua totalidade. Amanhã, nem Sartre nem qualquer outro filósofo nos garante algo irrefutável. O pensamento para valer a pena, em qualquer época, reivindica o direito de pensar livre. É o que Sartre soube fazer com maestria e estilo, provocar a contradição e não buscar a chave de todos os problemas. A filosofia e a literatura em Sartre estão a salvo por muito tempo.   

(Texto publicado no Correio do Povo - Caderno de Sábado -24/12/2016)


                         Paris

sábado, 17 de dezembro de 2016

Noite

   Cidade Baixa



“O sol data o tempo interpretado nas ocupações.”
Martin Heidegger

Eu não sei se a solidão maior é estar sozinho ou é estar diante das certezas absolutas da vida. Se a certeza é uma definição, o absoluto de todas as coisas afunda-se nas incertezas de algo que é coisa do humano, demasiado humano. Estamos envolvidos até a morte com as certezas. O sujeito chega e solta sua sentença, ele vem com suas armas de morte, não de vida, pois a vida está bem distante das certezas do sujeito que as sentencia. É melhor tomar conta da vida que simplesmente desaparecer.

sábado, 10 de dezembro de 2016

A fuga


                                 

“Ela se desintegra e se dispersa numa espécie de fuga. Quanto mais elevada for a categoria da vítima, maior é o seu medo.” Elias Canetti − Massas de perseguição



Todo ano, quando se chega ao fim dele, uma massa, que pode até ser unida nas diferenças, se junta para trucidá-lo. Este ano, em especial, foi disparado o mais infeliz do século XXI para uma maioria significativa. A outra parte gostou do que vivenciou. Para uma terceira infinitesimal parte, mais um ano indiferente. Sempre é assim quando damos cabo ao que se iniciou um tempo atrás, depois de muito ser percorrido; maltratado pela massa, pela sabedoria do presente, o ano se torna vilão no tempo que se esgota.
Os agrilhoados ao tempo que colou no ano que perdeu a força renovadora, esses, querem fugir, dar um basta ao tempo que não foi tão condescendente, por isso fazem suas orações no dia do juízo final. Uns rezam de forma ordeira, pensam no deus coletivo de um credo, outros, mais descolados, oram de forma singular, é no prazer e na dor que se dá um fim definitivo ao ano desgastado. Existem outras categorias que podiam fazer parte desta reflexão, mas prefiro me deter no conceito de uma só massa, a que na fuga vai passando por cima de tudo. Unida no atropelamento coletivo, a massa vai fazendo um estrago e acha que só está extravasando seu ódio daquilo que tanto mal lhe fez: o ano de 2016 chega ao fim.
Lembro que o ano não foi dos melhores, olho por dentro da lente subjetiva, sinto que não sentirei tanta falta daquilo que não me serve mais, aí me dou conta que estou junto à massa. Fico estarrecido com minha falta de capacidade de assimilar as frustrações, de querer só as vitórias, bem que podia ter sido mais humano nesta hora. Creio que só um retiro sabático para tirar-me do fundo do poço onde todos acabam ficando.
É impressionante como o sentido de destruição é compartilhado, como os sentimentos de mitificação e autopunição são compartilhados, e tudo para dar um fim a uma parte do tempo que se esgota. Somos tão irresponsáveis que nem o deus dos crentes nem um sentimento de união nos salvará da virada. Vamos pular o mar de ondas direto para 2017. O golpe não nos salvou, Brexit nenhum nos unirá, o ódio branco não será suficiente à união dos globalizados, dos nacionalistas, dos reformistas, nada disso será suficiente para dar garantia de um ano melhor. Definitivamente, preciso de um ano sabático em outro planeta.
Imagem: Valência


Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...