domingo, 22 de março de 2015

Regras de pular obstáculos



“Aos sábados, ou aos domingos, viam o Platense jogar. Em alguns domingos, quando tinham tempo, passavam pela quase marmórea confeitaria Los Argonautas, com o pretexto de rir um pouco da moças.” Adolfo Bio Casares (O sonho dos heróis – 1954)



Existem regras para seguir, eu sei, mas existe caminho para se ir, as regras simplesmente nós a inventamos para enganar o tempo. O único caminho que possamos abdicar totalmente das regras é o do sono. Dormir. Descanso absoluto de quem vive no mundo das regras. Existem pessoas que usam termos para falar de algo que a regra é apenas uma parte. A pessoa diz uma coisa em outro idioma para burlar sua mente, acha que assim está falando algo diferente. Engano, a regra tem sua exceção mas na lógica da regra inventar algo não origina um novo signo para dizer algo... A tagarelice idiomática pós-pop é a pobreza dos pseudos-tecnosustentáveis. Amam o orgânico e se lambuzam de signos pobres de se comunicar. Vasos que ligam o cérebro com o desejo mas esquecem do prazer de confundir a lógica do consumo. É como vestir qualquer roupa que nos tire o frio, é parte da regra, dependendo da noite ou dia, é exceção da regra. 

Águas


“Julgar é comparar; e, claro, na vida cotidiana, é preciso fazê-lo com freqüência. É o princípio da moral. É o princípio da política.” André Comte-Sponville

Na vida é assim, se vive anos em busca de algo, anos subindo e descendo escadas, procurando ficar num lugar mais privilegiado para ver a vida passar, aí chega alguém já em um pedestal, sem precisar subir e descer escadas, alguém nas alturas na maior simpatia. Assim é a vida, uns ganham de graça o que é da vida, outros perdem com seus sonhos o que seria o resultado de uma vida. Viver é estar atento a tudo, o importante é procurar olhar as coisas sem se importar com os parasitas. O cotidiano deles nunca será o seu, digo, aos olhos dos que veem as coisas como sendo uma vida, um tempo de resto de vida, é melhor que seja assim, depois de subir e descer escadas anos e anos, melhor é mudar de cidade, de país... O planeta ainda tem água potável? A maré do que vejo é essa, sempre alta, o nível mais elevado é o que chego todos os dias, depois que escurece nem de cima vejo as águas do sol da escadaria. Como diria Maurice Merleau-Ponty “Penso que é próprio do homem pensar Deus; o que não quer dizer que Deus exista.”


terça-feira, 17 de março de 2015

A mulher do Café



“Não sou nada. Nada mais que uma silhueta clara, naquela noite, na esplanada de um café.” Patrick Modiano

Em frente ao café fiquei. Parado mais de vinte minutos, imóvel, sem arredar pé, fiquei ali a ver um gesto do lado de dentro, alguém que pareço conhecer, uma mulher sozinha, imperativa, ao mesmo tempo absorta, parecia perdidamente desnorteada em si. Mas como poderia ser isso, eu estava a metros, lado de fora, o vidro imenso nos separava? Eu invisível a todos, ali, parado, as pessoas atravessavam por dentro de mim, zunido forte em cada movimento, eu ali, estático, meus dedos eram únicos, o vento que batia de frente na árvore. O movimento do tempo entre a rua e o café. Aos poucos, muito mínimo as folhas secas caíam sobre a calçada e, ali estava eu a ver aquela imagem que mais parecia um filme de outro lugar.

Eu estava aqui, um buraco de cidade, os carros e a sirene de ambulância, gritos, músicas e ruído, vozes em cântico ou lamentos de falta de visibilidade. Nada me tirava do tempo único e parecia ser pouco vinte minutos. Vinte segundos entubado: água em minha boca... Ali, estava eu, ao redor, um mar de gente, um mar ao fundo, o café por dentro em sua cor de sol que queima. A mulher perdida em seu olhar dentro da xícara. Eu ali, um homem sem interesse algum ao lamento da cidade. Um crime, pensei. Ela deve ter cometido um crime, eu a conheço, ela está ali, eu aqui impenetrável a sentia sem ela perceber. A mulher parecia incomodada com algo, chamou uma pessoa, falava gesticulando, olhou em minha direção, uma negativa no movimento dos ombros, a cabeça de um lado ao outro, como uma bandeira ao vento. De repente, ela levanta, se dirige ao balcão, paga o café e sai à rua, em direção a mim.... Me atravessa ao meio...passa resmungando, um soluço, algo que não deu para entender. Depois, já dentro do meu silêncio, ela se mistura ao meu tempo... segundos depois, parte em direção ao mar. Ouvi uma única coisa: “Os peixes do lado de lá fedem menos do que desse lugar”. Sumiu. Voltei a flanar em direção ao outro lado.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Olhos do viajante, recorte do pensamento


“A alma jamais pensa sem fantasia.” Aristóteles

Quão estúpidos são os homens que creem que a vida é só viver; a vida é, também, renuncia, é deixar de viver momentaneamente para se dedicar ao não vivido. Viver não é só gozar a vida, é tudo, até mesmo morrer para viver melhor outro dia após outros dias. Andei pensando esses últimos dias, enquanto viajava, lia, via coisas novas, coisas que já tinha visto mas meus olhos renovados já passaram pela negação da vida, questionava ao total abandono de um absoluto nas imagens. Tudo parece novo, mesmo que já tenha visto, imagino o novo diante dos olhos, o sentir desse espaço infinito por onde o pensar foge da imagem. Vejo outros mundos dentro do mundo em que me adentro a ver. A vida do viajante é interessante porque nunca consegue descansar a cabeça, sempre quer olhar e pisar mais o todo de qualquer canto por onde passa. O viajante difere do turista, ele é quem conduz o roteiro, quase sempre aleatoriamente, mesmo que organizado, ele consegue se perder, mais adiante, ele consegue se achar e encontrar lugares já existentes; para o viajante tudo é novo e eterno. O desconhecido é um livro a ser lido. Um eterno retorno dentro de um conceito de vida, de viver e morrer por onde passa, pelos cafés, pelos bistrôs por onde aporta seu barco. Cansado, toma seu café a perder de vista os sentimentos, e, já a pensar como é bom esquecer sua origem, de onde veio. É como os tempos em que os cafés reuniam o mundo, as ideias, agora alguns viajantes. Nunca pensar o fim daquele momento que mais parece um descanso para o corpo. A melhor forma de viver sem esperar o que encontrar, é viajar, é poder ler descolado do leitor comum, é ler, sorver um gelado, um doce ao lado da praia mais cheia de gente, é como ficar no sossego do rio, ouvir o som das águas, ver o vento arejar as ideias, e retomar do esquecimento um pouco de sua história deixada em cada lugar por onde cravou seus dentes. Assim, voltar para casa um dia, é sempre bom quando esquecemos um pouco do caminho de casa e nos perdemos para nos encontrarmos.


Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...