quinta-feira, 30 de julho de 2015

Compreensão




“O que seria a vida sem esquecimento.”
Hans-Georg Gadamer

Que bom envelhecer e esquecer, e que não devemos esquecer de viver, e que todo esquecimento é viver mais um pouco, é lembrar viver mais um tanto outro muito de vida. Porque viver é esquecer um pouco de tudo, é viver um tudo de nada dos poucos instantes vividos. Viver e não deixar de sentir as imagens, de não deixar de provar o vento como se o olfato fosse um som a cruzar um eterno campo de vida, e nosso voltar para o tempo é cheirar mais um pouco do esquecido, do ar que passa sobre a cabeça. E um vasto oceano e todo movimento a desaguar na vida.

E morder a vida com aquilo que o esquecer nos deixou sentir: Viver os últimos dias como se vivesse os primeiro anos de vida, viver por viver sem deixar de cuidar da vida. Viver sem as certezas da exatidão, das verdades, e sentir todas as verdades vividas nesse caminho de vida intensa.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Abertura do Ser



“Ele sabia, porém, que a linguagem nos suporta como um elemento. E, contudo, ele a obrigou frequentemente com violência a se voltar contra si mesma.”
Hans- Georg Gadamer


Tarde cinza, a escuridão do quarto, a janela se abre com vento que vem do outro lado do rio. A batida na janela é forte. Zunindo, o som é zinco a zunir em meus ouvidos, a mão invisível força a persiana, força meu sono a acordar. A luz que entra no quarto é tempo do sol, um prenúncio de primavera que é envolvido pelo movimento ‒ a Terra, o corpo inerte, as mãos nos olhos, a boca na secura, os olhos na persiana que bate, escancara a alma ao tempo ao som da “Oração ao tempo”.
Um corpo, antes inerte, acorda sem se importar com nada, o vento passa de um lado a outro, homens cruzam sua casa. Fantasmas em olhos embaçados, seu quarto é invadido por cavaleiros das trevas. Um cheiro forte fica no ar, o incenso da vizinha se mistura no cheiro do café vindo da cozinha. O caminho até o fogão é próximo. Pássaros habitam a antena de TV do prédio ao lado, cabelos úmidos e fétidos adeuses que ficaram no tempo de outro lugar. Um homem sem se mover, olha em volta, resmunga, olha o lado contrário da capa do “Ser e o Tempo”, o vinho cheio na garrafa, pensa em levar as mãos até o clarão vermelho que completa a borda do cálice. As mãos trêmulas. De um só pensamento. Levanta! Consegue ir até a porta, entra e diz ‒ vim tomar um café no meu amanhecer.

sábado, 25 de julho de 2015

Chá Noturno



“Nenhum metal é onipotente. Bum! Bum!”
“Dentro do livro matraqueiam as letras. Estão presas e não podem sair.”
Elias Canetti

Derreta a melancolia dos olhos antes que o sol tome conta do resto, exerça sua força diante do todo, vingue suas derrotas apenas para se tornar mais forte, o sol é mais forte que seu violento pensar, atravesse a cidade antes de escurecer, a noite é a luz da escuridão, lá no escuro poderá sentir saudades do dia em que estava ao sol, que ao penetrar o vão da janela brilhou em seu peito desnudo. Não durma antes de olhar o céu, cuide bem antes de adormecer os quatro cantos da vida, tranque bem as portas, soltes os cachorros, fale com os gatos, tome uma xícara de chá. O sonho invadirá seu coração. Amanhã talvez acorde vivo.

  

domingo, 19 de julho de 2015

Movimento




“A arte só está próxima do absoluto no passado, e é apenas no Museu que ela ainda tem valor e poder.”
Maurice Blanchot


Meu grupo é tão seleto que não existe, vivo no limbo da desatenção, permaneço só na multidão, mordo a cauda da serpente, vejo no espelho o movimento do corpo, vejo a luz difusa, a névoa de um domingo cinza. Corro feito louco para ver o mar, nado fundo para não mais voltar, sigo em braçadas até o fim do livro. Vejo a mesma cena do filme que passa aos olhos, ouço o som no fundo do pensar, marco a linha imaginária na tela para traçar minha fuga.


Tempos Difíceis

                   Doze Girassóis numa jarra - Vincent Van Gogh - 1911




“Inteiramente diverso é o que se passa com o tempo linear.”
Karl Jaspers


Estamos vivendo tempos difíceis, essa evangelização nos sentimentos, na cultura, na forma desapegada que se tem para levantar os braços e agradecer a torto e a direito a tudo que é de ordem divina, do esforço de cada um, do cérebro de cada um, o que é da Vida passa a ser a mão do senhor.  
A criação dos homens virou uma dádiva, logo agora que não existe nada de criativo nas atitudes e nem no que se apresenta como sendo cultura, música, literatura e outros fazeres dos homens que se acham donos da Terra.
Estamos vivendo esse tempo de gerúndio, de poente nas histórias; na política, o pensamento de esquerda está mais perdido que papel ao vento, a direita, está cada vez mais orgulhosa de suas atitudes, de seus propósitos e agradece ao senhor do egoísmo... Mas esse tempo é mortal. Felizmente. Estamos a viver todos os tempos num só século. A água está suja, o plástico é uma ilha para os olhos dos homens, então, alguém poderia me dizer uma coisa: onde andam os deuses e seus sons, onde está a pintura dos girassóis e os cineastas libertários, onde estão todos?


Passagens

        Brassaï - Pont Neuf, Paris (1949)     “ As ruas são a morado do coletivo.” Walter Benjamin “Na praia, o homem, com os braços cru...