sexta-feira, 1 de maio de 2009

O Ano Zero da Alemanha

"Minha cultura nutriu-se de minha vida e minha vida nutriu-se de minha cultura."
Edgar Morin



Capa de Eduardo Miotto

Sempre sonhei em editar esse livro, aliás, editar coisas perdidas, inéditas do Edgar Morin, como no caso do Diário da China. Agora, busquei nas bibliotecas da França um exemplar perdido, porque nem o Morin tinha mais. L'An Zéro de L'Allemagne, como escreveu Morin em Meus Demônios, "foi fruto de minhas experiências vividas e de minhas interrogações vitais da época". Gosto dos desafios, gosto desse gosto de ir na juventude de um grande pensador para mostrar que seu texto está aí. Para me deleitar com a edição, com os olhos dos leitores e dos que amam as ideias. Aqui vai uma provinha do prefácio que o Morin escreveu para essa nova e primeira edição na língua portuguesa.

Prefácio da Edição Brasileira

Após a grande “fraternidade” da Resistência, minha inserção na “vida normal” foi difícil. De adolescente no começo da guerra, transformara-me em adulto na época da libertação de Paris. De pequeno chefe da Resistência, passei a procurar emprego como civil. Comunista pouco ortodoxo para os comunistas e degaullista duvidoso para os seguidores de De Gaulle, não tive êxito como jornalista, pois as matérias que eu propunha aos jornais que me ofereciam trabalho acabavam sendo rejeitadas. Acreditei, então, realizar algo útil organizando uma exposição sobre os “crimes hitleristas”. Os funcionários de pequeno escalão que o governo francês me havia oferecido como colaboradores eram de uma mediocridade moral que me indignava. A exposição ainda não havia sido concluída quando fui salvo pelo acaso. Meu amigo Pierre Le Moigne, um herói do movimento ao qual eu pertencia, fez-me reencontrar outro herói, o comandante Durandal; seu verdadeiro nome era Chazeaux, havia dirigido o maqui do Franco Condado e usava seu pseudônimo1 com grande orgulho. Durandal buscava voluntários para o Estado Maior do primeiro exército que acabara de entrar na Alemanha com o objetivo inicial de cuidar dos prisioneiros de guerra e dos deportados e, em seguida, ocupar-se da gestão dos territórios ocupados.
Não hesitei. Haviam me oferecido a oportunidade não apenas de libertar-me de uma vida que se tornara medíocre, mas também de conhecer a Alemanha.
Mesmo nos tempos mais duros da Resistência, eu lutava não contra o povo alemão, mas contra o nazismo; isso sem mencionar o fato de que meu colaborador Jean Krazatz era um marinheiro de Hamburgo, combatente na guerra da Espanha. Além disso, tudo o que eu mais amava em matéria de cinema, poesia e filosofia vinha da Alemanha. Dois filmes de Georg W. Pabst (1885-1967), A Ópera dos Quatro Vinténs e A Tragédia da Mina, dois filmes de Fritz Lang (1890-1976), O Testamento do Doutor Mabuse e “M, o maldito” haviam marcado meu espírito adolescente, enquanto Brigitte Helm, a soberana Antinea no filme Atlântida, e Marlene Dietrich em O Anjo Azul haviam fascinado meu erotismo juvenil. A música romântica alemã de Beethoven a Richard Strauss, a poesia romântica alemã com Novalis e Holderlin, a filosofia alemã com Hegel, Marx, Nietzsche e Heidegger (que eu iria encontrar em Freiburg-en-Brisgau), tudo isso constituía o melhor de meus alimentos espirituais. Eu me perguntava, então, como a Alemanha, que dera origem ao que mais amo em música, poesia e filosofia, fora capaz de produzir a monstruosidade nazista? Sempre me lembrava das cenas filmadas de Hitler, nas quais, em estado de possessão quase histérica, com suas vociferações roucas, ele conduzia um povo inteiro a esse mesmo estado de possessão histérica.
Edgar Morin

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